Falta de variedade nas line-ups de festivais de rap desvaloriza artistas em ascensão
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Orochi, Cabelinho, TZ da Coronel e Major RD foram os artistas que mais estiveram presentes nos festivais de rap de 2023. Entre os 30 registrados no site Mapa dos Festivais, eles tocaram em 14, ou seja, quase metade. Ao todo, apenas os 10 rappers que mais se apresentaram somaram quase 120 participações. Enquanto as line-ups seguem repetitivas, músicos que ainda não conquistaram o público geral pedem passagem, mas parecem invisíveis aos olhos dos contratantes.
Mapa dos Festivais é uma plataforma criada em 2019 que concentra os festivais que ocorreram / irão ocorrer no Brasil. Os dados apurados contam apenas os eventos de rap. Shows pontuais e participações destes artistas em festivais de outros gêneros não foram contabilizados. Djonga e Oruam dão continuidade à lista, com 11 shows cada, seguidos por L7nnon, Matuê, Poze do Rodo e Filipe Ret, com 10. Um a cada três destes festivais aconteceram em solo carioca.
Para David Silva, gerente de comunidade da Flagra Rap – veículo de rap independente – esse movimento reflete a atualidade das produções do gênero. “São músicas genéricas, com as mesmas batidas, letras repetitivas e que, ainda assim, conseguem cair nas graças do público”. Ele ainda explica que isso faz com que muitos rappers emergentes optem por não inovar.
– São poucos os casos dos que conseguem conciliar o trabalho artístico com o que trará sustento para casa. É cômodo para os artistas com pouco capital investirem em produções genéricas, já que há uma possibilidade maior de ter uma boa recepção do público geral, e, consequentemente, fazer shows – pontuou.
Muitos nadam contra essa maré, mas uma das principais “recompensas” pelo trabalho acaba sendo a frustração. A lista de rappers em ascensão na cena que não puderam apresentar seus novos e velhos projetos nos festivais de 2023 é extensa. Os cariocas Derxan e Big Bllakk, por exemplo, lançaram três este ano: “Músicas Para Fumar Balão”, álbum colaborativo, junto da “Mixtape Eu Mermo” e “Errejotacultdrill, Vol. 2 – Esquema Novo”, respectivas produções solo dos dois.
Eles somaram mais de 100 milhões de reproduções apenas no Spotify e, mesmo assim, suas apresentações no ano passado se resumiram a participações nos shows de Major RD, idealizador da gravadora Rock Danger. O show de estreia do “Músicas Para Fumar Balão” aconteceu no dia 12 de janeiro de 2024, no Circo Voador, na Lapa – RJ, quase 10 meses após o lançamento nas plataformas. Se no eixo da região sudeste já está complicado, quando sobe a linha do mapa o problema agrava.
“A indústria digere fórmulas prontas mais facilmente, ela não gosta de novas experimentações. A maioria não consegue furar essa bolha”, explica Victor Xamã, rapper nascido em Manaus-AM, que, mesmo com uma base de fãs estabelecida, indicações para prêmios e quase 100 mil ouvintes mensais no Spotify, não foi convidado para nenhum dos festivais apurados.
Victor Xamã é um dos pioneiros da região norte do Brasil no gênero, que concentra sua maioria na região sudeste. Para ele, o que faz com que um artista cresça no meio, e, consequentemente, tenha seu nome ventilado em planejamentos de eventos, é um trabalho conceitual, em formato de álbum ou EP (extended-play). Seu terceiro disco de estúdio comprova esta ideia.
No último dia de março deste ano, Victor Xamã lançou “Garcia”, que viria a marcar a sua carreira. Disco favorito de 2023 de David Silva e de muitos outros opinadores digitais do gênero, o álbum traz elementos da soul music e R&B, que são a base de versos sobre amor, gana de vencer, problemas da indústria e reflexões pessoais.
Somando quase 2 milhões de reproduções no Spotify, “Garcia” fez muitos contratantes enxergarem o cantor manauara, mas, inexplicavelmente, parece não ter tocado no fone de ouvido dos que organizam os festivais. Como ele ressalta na faixa “Dias em Branco”: “Não sou o que a indústria quer, sou o que ela precisa.”
Rodrigo Costa, jornalista do Rapmais, maior veículo de hip-hop do Brasil, explica que é dos espaços de apresentação que a maioria dos artistas tiram seu sustento, e que os festivais permitem que eles atinjam o público geral que, normalmente, só os conheceriam se tivessem algum hit. Mas ele acredita que parte desse público tem corrido atrás de músicos que estejam fazendo diferente, por conta da pouca variedade sonora do “mainstream”.
– Mesmo sem entender muito do que se trata, um dos principais exemplos de artistas com sonoridades diferentes que o público tem consumido muito é o Puterrier, que fez uma mistura de sucesso do funk carioca com o grime, subgênero da música eletrônica londrina caracterizado por batidas metálicas graves e aceleradas – explicou. Puterrier se apresentou em um festival dos 30 apurados.
O Cena2K23, festival que aconteceu em dezembro do ano passado em São Paulo e Brasília, contou com uma line-up diversificada, juntando rappers do “mainstream”, com alguns menos conhecidos. No anúncio, parte do público criticou a organização do festival pelos nomes escolhidos.
David Silva, da Flagra Rap, explica que um curador ou produtor de festival deve equilibrar a programação entre artistas que movem o público e os que estão em ascensão. “Os eventos priorizam o lucro e os interesses de mercado, mas, além da relevância cultural do músico, deve-se levar em conta a qualidade. Um exemplo disso é o convite do Cena2K à Monna Brutal, primeira artista trans feminina a se apresentar no evento.”
Para as mulheres do meio, os obstáculos podem ser ainda maiores. Thai Flow, natural do Jacarezinho-RJ, que somou quase 200 mil ouvintes no Spotify em 2023, conta que não entende o porquê das pessoas não comprarem as ideias das mulheres. “É mais fácil para o homem só ser bom. As mulheres precisam aprender todas as sagacidades do ofício, mesmo que as nossas ideias sejam tão amplas quanto as dos caras. Tem mulher falando sobre ostentação, putaria, militância, moda… Nós falamos sobre tudo.”
Thai está em processo de consolidação na cena do Rap nacional. Sua carreira começou em 2015, em rodas de freestyle e nas batalhas de improviso. Quando começou a se destacar, procurou se profissionalizar, mas, por sentir que não a permitiam contribuir, logo decidiu largar a gravadora.
– Quem tá lá em cima não quer que você chegue lá, eu me sentia muito limitada. A informação não é passada. Essas pessoas não ensinam como fazer, não dão o caminho da parada. Eu não tinha direito de escolha para trazer ideias para minha arte, lançamentos de discos. Ideias criativas não eram aceitas na mesa. Eu era sempre a última a saber de tudo. – lembrou.
A rapper fez sua estreia em palcos de festivais esse ano, no Faixa Preta Festival. Essa maratona de shows na Praça da Apoteose – RJ contou com a presença de seguidores fiéis do rap de várias comunidades, e Thai viu ali uma oportunidade de entregar uma apresentação completa. “Paguei o meu próprio show. O cachê foi de R$6 mil e eu desembolsei R$15 mil para investir nos meus dançarinos e na equipe. Quero entregar o meu melhor para eles e para o público”.
Esse festival juntos grandes nomes do Hip Hop nacional, como Djonga e TZ da Coronel, com artistas do “underground”. Foi no Faixa Preta que SD9, VND, Febem, Shury, Abronca, Lizzie e Puterrier fizeram suas únicas apresentações em festivais de rap em 2023. Para Dema Leite, produtor que se afastou de eventos de gênero pelos recentes rumos da indústria, é dessa forma que deveria ser a seleção de artistas.
– Não é o mais lucrativo, mas é o que eu acredito. O genérico dá mais dinheiro do que construir uma identidade. Quando produzo um evento, procuro adicionar pessoas que ainda não têm muita relevância para aproveitar a visibilidade que os artistas maiores proporcionam. É a oportunidade para crescer em cena. Acredito que todos os festivais deveriam dedicar um espaço para músicos de fora da bolha – concluiu.
Reportagem: Clara Glitz e Gabriel Rechenioti
Supervisão: Joana Braga