Mulheres no futebol: entre visibilidade e exclusão
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A realidade do esporte sempre esteve distante para as mulheres. Apesar de o mundo estar passando por transformações sociais ao longo das últimas décadas, o segmento que ainda enfrenta dificuldades com a igualdade de gênero é o futebol. O cenário esportivo foi naturalizado como um ambiente majoritariamente masculino desde a sua criação, e as consequências perpetuam até os dias atuais. Uma pesquisa da Revista EFDeportes pontuou que 100% das jogadoras entrevistadas já vivenciaram preconceito na modalidade. Trata-se de um contexto de exclusão enfrentado pelo público feminino que incentiva a discriminação contra jogadoras, jornalistas esportivas, torcedoras e árbitras. “Mulher não tem que estar envolvida com o futebol”, mencionou a narradora Renata Silveira como um dos comentários que já recebeu durante a sua trajetória.
O assédio nas arquibancadas não é raro de acontecer. Muitos homens não respeitam a presença feminina nos estádios, implicando negativamente na participação das mulheres no segmento esportivo. Um dos vários casos que acontecem cotidianamente nos jogos é o da torcedora Luanna Mello de 22 anos. Ela relata o assédio que sofreu durante a partida: “Uma pessoa simplesmente passou a mão na minha bunda no meio da arquibancada”. Esse comportamento originário do machismo está longe de ser recente e vai além do abuso moral e sexual, sendo algo enraizado na sociedade.
O início tardio do futebol feminino
Marta Vieira da Silva, atacante da seleção brasileira, é o nome mais famoso quando se pensa em futebol feminino. A atleta nordestina já foi eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo pela FIFA. Porém, o fenômeno de Marta esconde um contexto histórico do país: a modalidade foi considerada crime no Brasil durante 38 anos. Apenas em 1979, o decreto foi revogado, o que possibilitou a participação de mulheres no esporte. Mesmo assim, até hoje há uma dificuldade de profissionalização e motivação quando comparado ao gênero masculino.
A primeira Copa do Mundo feminina foi realizada em 1991, enquanto a seleção masculina brasileira já tinha conquistado seu tricampeonato. Atualmente, no Brasil, apenas nove das 16 principais equipes femininas têm vínculos profissionais com as suas atletas. A falta dessa profissionalização gera contratos curtos e baixos salários, o que dificulta a garantia dos direitos trabalhistas das jogadoras e o avanço da modalidade no país.
Por conta desse atraso, muitas meninas passam por obstáculos para praticar o esporte, tanto por lazer quanto profissionalmente. Além do baixo investimento, da discrepância salarial e da estrutura precária dos clubes, o emocional também é afetado. Mariana D’Avila, atleta de 18 anos do Fluminense, conta que já ouviu inúmeros insultos direcionados a ela por ser menina e jogar bola e, por consequência, passou por dificuldade psicológica. “Na escola, as meninas me excluíam e não deixavam eu brincar só porque eu jogava bola. Com isso tudo, eu precisei entrar em um acompanhamento psicológico”, afirma.
Mariana Guimarães D’Avila treinando pela equipe feminina do Fluminense / Leonardo Brasil FFC
O preconceito dentro e fora de campo
As mulheres sempre são alvos de críticas e preconceito no meio do futebol. Assédio moral, sexual e psicológico são os principais casos sofridos no cotidiano. Essas agressões só atrasam a participação feminina no meio esportivo, além de desestimular jovens que desejam mostrar seu potencial. Ainda de acordo com a revista EFDeportes, 41% das jogadoras entrevistadas sempre vivenciam uma experiência que possa ser definida como discriminação. A jornalista esportiva Eliza Ranieri acredita que é quase impossível ser mulher e trabalhar com futebol e não se sentir discriminada, silenciada ou assediada em algum momento. A profissional afirma que também já passou por situações em que suas opiniões não eram validadas e sempre colocadas como dúvida por outros homens. “Já aconteceu de eu falar uma opinião várias vezes e ninguém acatar, e um homem falar a mesma coisa e ser validado”.
Para muitas mulheres, o assédio nas arquibancadas infelizmente virou algo cotidiano, pois muitos homens não respeitam e violam o corpo feminino. Luana Mello, torcedora do Bahia, também já relatou ter sofrido assédio no ambiente do futebol. “Eu estava saindo do estádio e na multidão, uma pessoa que eu não tinha como saber, simplesmente passou a mão na minha bunda no meio da arquibancada”, afirmou.
O preconceito vai além dos estádios. Há diversos casos mundiais que refletem no cotidiano das brasileiras envolvidas com o esporte. Em 2021, as acusações de assédio repercutiram na liga de futebol feminino dos Estados Unidos, que é o país mais vitorioso da Copa do Mundo Feminina. Dentre os 10 clubes presentes no campeonato, cinco tiveram demissões ou afastamento de treinadores por denúncias de assédio moral e sexual, além de racismo e LGBT+fobia. Já na Europa, nesse mesmo ano, a jornalista esportiva Greta Beccaglia foi assediada ao vivo enquanto cobria a final de um jogo pelo Campeonato Italiano.
O cenário do esporte não é receptivo e se torna hostil para as mulheres que gostam e querem ser incluídas. “A mulher para estar ali é porque realmente tem que querer estar, porque ela não se sente bem, ela não se sente acolhida.” disse Luana.
“O futebol foi criado por e para o corpo masculino”, diz socióloga
O preconceito não se restringe apenas ao cenário futebolístico, ele é presente na sociedade brasileira em diversos setores. A socióloga Jéssica Costa afirma que há uma cultura persistente por trás dessa dificuldade enfrentada pelas mulheres, já que o futebol foi criado por homens e voltado ao público masculino. De acordo com uma pesquisa do Ministério dos Esportes de 2015, os meninos começam a praticar esportes aos 5 anos e as meninas somente aos 11. Esse dado evidencia que o incentivo à atividade esportiva é muito tardia na infância feminina, sendo justificada também pelo machismo enraizado na sociedade. “Homem quando nasce ganha uma bola. Mulher quando nasce ganha uma boneca” afirma Edna Alves, árbitra de futebol pela CBF desde 2007.
Edna Alves foi a única juíza brasileira dos Jogos Olímpicos de Tóquio / Créditos CBF Fifa
Nas gerações passadas, o papel da mulher era voltado ao ambiente doméstico e cultural, e o local de esforço físico, como o esporte, era visado para o gênero masculino. Com o passar dos anos, através de muita persistência, elas vêm quebrando paradigmas e abrindo barreiras para uma igualdade. Para a socióloga, essa visão parte de um olhar estereotipado e, como consequência, preconceituoso da sociedade sobre o papel da mulher em espaços que ela não pode ou não deve ocupar. “A invisibilidade e marginalização de corpos em práticas esportivas é um reflexo da mesma segregação que ocorre na sociedade como um todo.“ diz Jéssica.
Elas estão ganhando voz
A partir do crescente debate social sobre a equidade de gênero, as mulheres ganharam mais espaço em muitos segmentos, sobretudo, no cenário do futebol. Uma grande conquista recente é a presença de arbitragem feminina pela primeira vez em 92 anos no maior evento de esporte mundial: a Copa do Mundo de 2022. Fora de campo, também haverá uma novidade no jornalismo esportivo brasileiro durante a competição em novembro no Catar. A Rede Globo escalou a primeira narradora mulher, Renata Silveira, para narrar jogos da grade em TV aberta.
Renata Silveira (Divulgação/Globo/João Cotta)
Renata afirmou que está muito feliz com essa iniciativa da emissora: “Ser a primeira mulher a narrar um jogo na Globo é um sonho que eu realmente nunca imaginei.” Com essa novidade, é notório que o cenário do futebol está tornando-se mais inclusivo em relação às mulheres. A profissional afirmou que o papel feminino está crescendo cada vez mais e acredita que é um caminho sem volta, pois daqui para frente mais vozes femininas vão se inspirar e acreditar que é possível entrar em qualquer área que desejam, sem medo dos comentários preconceituosos.
Desde o começo da trajetória da narradora, ela só escutava vozes masculinas contando a história do futebol, então compreende a estranheza que causa na sociedade por não acharem normal uma mulher narrar uma partida. Porém, Renata ouve críticas direcionadas ao gênero feminino e ao passado naturalizado pela sociedade, no qual estava relacionado aos trabalhos domésticos, e que passam do limite da tolerância. “Tem mensagens de ódios que nós, narradoras, recebemos e que não deveríamos como: mulher não tem que estar envolvida com futebol ou mulher tem que estar lavando uma louça”.
A diferença de tratamento aparece até mesmo na forma de julgar o trabalho das mulheres. Renata Silveira relata que, enquanto o homem é criticado por sua narração única, as narradoras são criticadas englobando todo o gênero feminino. “Quando criticam meu trabalho, criticam no geral, como se todas as mulheres fossem iguais e narrassem iguais”, explica. Ela conta que há uma generalização em que todas não são julgadas pela atuação individual.
Na última edição da Copa do Mundo, em 2018, a estreia da narração brasileira feminina foi realizada por Isabelly Morais de 20 anos, porém, em TV por assinatura no canal FoxSports. Em sua rede social, a jornalista reconheceu o momento histórico no qual participou e apontou que há muito caminho a percorrer. “Narrei meu primeiro jogo de Copa do Mundo e estou muito feliz pelas mensagens e pela repercussão. […], uma mão de gols narrados e um horizonte na narração de mulheres. Só vamos!”
A conquista da mulher no ambiente do futebol foi algo de muitos anos e de muita luta. Renata reconhece que esse momento é histórico e parabeniza todas as envolvidas, pois entende que o processo foi de degrau em degrau para alcançar e ocupar mais espaços na sociedade. “Se hoje eu estou ocupando esse espaço de narradora, é um trabalho de todas as mulheres das que trabalharam, das que tentaram e desistiram, que lutaram pelos seus direitos, pelo seu espaço, pela igualdade. Então não é uma conquista só da Renata, é uma conquista de todas as mulheres”.
Reportagem: Julia Bento, Julia Fróes, Júlia Vianna, Júlia Portes e Luciana Campos
Supervisão: Anna Julia Paixão e Maria Eduarda Martinez
Foto de Capa: Fernando Frazão/Agência Brasil