Sportswashing: Como a Arábia Saudita usa o esporte para maquiar violação dos direitos humanos
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O noticiário esportivo das últimas semanas está sendo dominado por grandes nomes do futebol confirmando suas transferências para a Arábia Saudita . O campeonato local já conta com o astro Cristiano Ronaldo (Al-Nassr), que surpreendeu o mundo ao trocar a Europa pelo Oriente Médio, no fim do ano passado. Mesmo sendo um dos cinco países que mais violam os direitos humanos, segundo a ONU, a Arábia Saudita é um dos lugares mais interessados em usar o esporte como ferramenta política. O termo usado para descrever essa prática é “sportswashing”, que é quando uma pessoa, grupo ou Estado, busca envolvimento com esporte para melhorar sua imagem pública e desviar o foco de outras questões.
Os altos investimentos no futebol são uma política de estado na Arábia Saudita. O governo do país é o responsável por pagar parte dos salários milionários dos atletas. Segundo a Forbes, Cristiano Ronaldo é o jogador mais bem pago do mundo, recebendo 200 milhões de dólares por ano no Al-Nassr. Outro ídolo do futebol que também é funcionário do governo saudita é Lionel Messi, que é embaixador do turismo no país há mais de um ano. Além deles, somente nesta janela de transferências, estão de malas prontas para se juntar a Liga Saudita: N’Golo Kanté (ex- Chelsea), Rúben Neves (ex- Wolverhampton) e Koulibaly (ex-Chelsea). Também são especuladas as contratações de Riyad Mahrez (Manchester City), Edou Mendy (Chelsea), Aubameyang (Chelsea), Saúl Ñíguez (Atlético de Madrid) e Hakim Ziyech (Chelsea). Todos considerados atletas de alto nível na Europa.
Direitos Humanos na Arábia Saudita
A Arábia Saudita é uma monarquia absolutista, ou seja, o país é comandado por um rei que toma todas as decisões. Quem controla o país atualmente é o príncipe regente Mohamed bin Salman (MBS), uma vez que o monarca, Salman, está afastado por questões de saúde. A família real está no poder desde 1935 e segundo a pesquisa da Freedom House, a Arábia Saudita está na posição 195 de 220 países no ranking de democracia.
No último mês de dezembro, a Arábia Saudita foi citada pela Organização das Nações Unidas (ONU), como um dos cinco países que mais violam os direitos humanos no mundo (os outros mencionados foram Coreia do Norte, Irã, Síria e Afeganistão). “Os abusos dos direitos humanos estão descontrolados e incluem torturas, detenções arbitrárias e execuções”.
De acordo com a Anistia internacional, o país saudita foi o terceiro que mais matou pessoas por pena de morte em 2022, com 196 execuções (quem mais cumpriu penas de morte foi a China, porém os números não são divulgados e o segundo foi o Irã, com pelo menos 576). Os condenados são mortos das mais diversas maneiras, podendo ser decapitados, apedrejados ou crucificados. É importante lembrar que a pena de morte para crianças só foi abolida em 2020 no país.
Práticas como homossexualidade e liberdade religiosa são estritamente proibidas na Arábia Saudita e podem ser passíveis de pena de morte. Os sauditas são obrigados a se relacionarem apenas com pessoas de outro sexo e deve seguir as tradições do Islamismo. Também são crimes que podem levar à execução do Governo: adultério, roubo, tráfico de drogas, estupro, terrorismo e espionagem.
O povo saudita convive com pouquíssimos direitos e de acordo com Orlando Stiebler, professor de história e atualidades formado na UFRJ, o governo utiliza os impostos como ferramenta de controle. “A população é totalmente subjugada, é um autoritarismo muito forte, ninguém pode falar mal do governo. E há uma uma política populista de agradar a população através da não cobrança de impostos e redução no preço da gasolina.” Em relatório do World Economic Forum, a Arábia Saudita aparece como 6º país em índice de menos impostos cobrados, com apenas 15,7% do PIB gerado por tributos.
A liberdade de imprensa também é um problema no país. Em 2018, o jornalista Jamal Khashoggi foi sequestrado e assassinado dentro da embaixada da Arábia Saudita, na Turquia. O repórter trabalhava no jornal Washington Post e havia se mudado para os Estados Unidos há cerca de um ano. Khashoggi era um crítico ferrenho do governo e o principal motivo para ter deixado a Arábia foi a sua segurança, que já estava sendo ameaçada.
O governo de Mohamed bin Salam confirmou a morte do jornalista e alegou que o ele teria se envolvido em uma briga, o que teria gerado sua morte. Porém, em junho de 2019, a ONU apontou o príncipe regente como um dos responsáveis pelo assassinato de Kashoggi. “Há provas críveis para justificar mais investigação sobre a responsabilidade individual de altos funcionários sauditas, incluindo o príncipe herdeiro”, concluiu a organização. De acordo com o ranking de 2022 da organização Repórteres Sem Fronteiras, a Arábia Saudita é o 170º de 180 países analisados no índice de liberdade de imprensa.
A origem do termo Sportswashing
Luis Felipe Herdy, Bacharel em Relações Internacionais (PUC-Rio), Pesquisador Associado no Gepom (Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Oriente Médio) e Assistente de Projetos Especiais no CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais, explica de onde surgiu o termo sportswashing. “A primeira vez que esse termo apareceu foi falando de Greenwashing. Basicamente, com grandes problemas ambientais de empresas que poluíam, essas corporações continuaram emitindo poluição, mas começaram a plantar árvores […] para justamente dizer: ‘que bom estão fazendo ações paliativas’, só que na verdade estão só ocultando as reais ações e intenções”
Outro exemplo utilizado por Luiz Felipe é o “Pinkwashing” em Israel. “A questão LGBTQIA + é uma pauta muito avançada, principalmente em Tel Aviv e de fato há uma comunidade muito eficiente e que tem um respeito aos seus direitos. […] Mas muitas vezes Israel é acusado de utilizar essa lógica para amenizar as questões com a Palestina”
No esporte, o sportswashing ficou muito associado ao Oriente Médio pelos investimentos recentes. Mas essa estratégia surgiu na FIFA durante a gestão do presidente João Havelange (1974-1998), que buscava melhorar a reputação da federação e com isso fechar acordos mais lucrativos. Segundo Luis Felipe, os clubes do “mundo árabe” usaram o futebol para melhorar uma imagem desgastada por causa dos casos de terrorismo. “Com a Revolução Iraniana, Guerra do Afeganistão, mas principalmente com 11 de setembro, a imagem que se tem no Ocidente do Oriente é uma imagem de terrorismo, homens bomba violência, de questões de violações de direitos humanos”
“A ideia que esses países empregam é: um torcedor do PSG quando pensa no Catar, não vai pensar em terrorismo em primeira vista, vai pensar que foram eles que trouxeram Messi, Neymar e Mbappé pro time dele” – conta o pesquisador. Luis Felipe afirmou que essa lógica também serve para Arábia Saudita, que por meio do Fundo de Investimento da Família Real, é dona do Newcastle. O clube inglês foi comprado em 2021 e após a injeção financeira e está classificado para Champions League, coisa que não acontecia desde a temporada 2003/04.
Além de chamar a atenção positivamente e desviar o foco de questões sociais, Luis Felipe acredita que o investimento no futebol pode ser utilizado para lavagem de dinheiro, assim como é feito em outras áreas. “Para você comprar uma obra de arte por X milhões de dólares, a avaliação disso é plenamente subjetiva. É muito fácil lavar dinheiro. E é a mesma coisa pro futebol, o valor de um jogador é totalmente subjetivo. E aí existe, ainda que muito incipiente, uma preocupação de que possivelmente isso esteja associado a uma lógica de lavagem de dinheiro.”
Petróleo e relação com os EUA
A Arábia Saudita é um dos maiores produtores do mundo, o que gera uma relação de dependência da exportação de petróleo para muitos países. A pesquisa do Statistical Review Of World Energy coloca o território saudita como a segunda maior reserva de petróleo do mundo (somente atrás da Venezuela). A partir do dinheiro da indústria petrolífera, o Governo conseguem fazer altos investimentos no esporte e ganhar capital político internacional.
A questão do petróleo combinada com todo o trabalho de sportswashing, tem como resultado uma total desassociação da Arábia Saudita com os crimes cometidos pelo governo. O país é membro do G20 (cúpula que reúne as 19 maiores economias do mundo e a União Européia) e chegou a presidir a organização durante o ano de 2020, mantendo relações diplomáticas com todas as potências globais. Um ato considerado simbólico, aconteceu em 2017, quando o recém empossado presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, escolheu a Arábia Saudita como primeiro destino internacional para visitar após assumir o cargo.
O Professor Orlando Stiebler explica a relação entre os Estados Unidos e Arábia Saudita: “Até mesmo países como os EUA (que não dependem exatamente do petróleo, porque produzem gás de xisto e tem autossuficiência em outras energias) têm interesse numa relação com a Arábia Saudita, até porque é uma questão histórica, para que os americanos tenham uma proximidade naqueles países árabes da região.” Os americanos há muito tempo tem uma política externa de buscar influência em várias regiões do mundo e no Oriente Médio existe uma “parceria” com os sauditas.
“Os americanos sempre tiveram muita dificuldade de relacionamento com o Líbano, com o Iraque, com o Irã, com a Jordânia e outros países árabes. Agora, a Arábia Saudita sempre foi uma aliada. Tanto é que no episódio do 11 de setembro, o ataque foi feito por 19 terroristas, 16 eram sauditas e hora nenhuma os americanos pensaram em reagir contra a Arábia Saudita e sim contra Afeganistão e Iraque. Então a geopolítica acaba se impondo“, lembrou Orlando.
Reportagem: João Scistowicz e Luiz Antonio Abreu
Supervisão: Júlia Vianna