“#SeAcabó”: protagonismo da seleção feminina espanhola mostra força para além dos campos no combate à violência de gênero
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Na última sexta-feira (15), Luis Rubiales, ex-presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), prestou depoimento na primeira audiência no Tribunal de Madrid sobre a acusação de agressão sexual contra a jogadora Jenni Hermoso. Na final da Copa do Mundo, a atacante foi vítima de um beijo, sem consentimento, dado por Rubiales na cerimônia de entrega de medalhas às atletas da seleção feminina da Espanha. Para que não haja interferência na investigação, a justiça espanhola determinou que o ex-dirigente se mantenha afastado da atacante. O caso gerou repercussão dentro e fora dos gramados, e o movimento “#SeAcabó” cresceu nas redes sociais e pressionou por respostas institucionais sobre a violência de gênero, que revelam um cenário de insatisfação e repúdio não apenas ao ato de Luis Rubiales, mas a atual estrutura política do futebol feminino espanhol e as desigualdades entre homens e mulheres presentes na sociedade.
A hashtag “#SeAcabó” faz referência ao grito de basta, que reivindica o fim das desigualdades de gênero marcadas pelo machismo que sustentam também o sistema de hierarquias profissionais, em que posições de poder e liderança são ocupadas por homens. De acordo com Isabel Montilla, pesquisadora espanhola com foco em estudos de gênero, a visibilidade do caso de agressão sexual cometido por Luis Rubiales foi fundamental para que ações concretas fossem tomadas, “numa competição em que se espera ver excelência e respeito, enfrentar esta situação é como ver uma explosão: é ouvida e não pode ser escondida, nem tapada. Isto nos leva a questionar as pessoas no poder e a redesenhar as fronteiras”, comenta a especialista.
Na Espanha, segundo Isabel Montilla, a reação de movimentos feministas no país com a repercussão #SeAcabó” chegam a ser comparadas como o movimento #MeToo, que faz referência às mobilizações ocorridas em 2017, iniciadas pela atriz Alyssa Milano no Twitter (atual X) para que o silêncio contra casos de violência e abusos sexuais não caiam no esquecimento, sejam investigados e punidos. Na época, o movimento ganhou força pela grande adesão de atrizes de Hollywood que denunciaram o influente e poderoso produtor de cinema norte-americano, Harvey Weinstein, por crimes sexuais. O protagonismo de ações coletivas também pôde ser visto nas mudanças que as jogadoras espanholas provocaram na federação de futebol no país.
Não é novidade que as atletas possuem uma relação conturbada com os dirigentes da Federação Espanhola. No ano passado, 15 jogadoras pediram dispensa da seleção por meio de um e-mail padrão para a RFEF, sob a alegação de problemas relacionados à saúde mental ocasionados pelo relacionamento problemático com o técnico Jorge Vilda. Isabel Montilla, falou sobre o peso que uma ação coletiva como essa representa: “Eu acredito que o que essas jogadoras fizeram foi um ato de bravura. Elas se manifestaram e sacrificaram seus objetivos profissionais para desmantelar as estruturas corruptas da RFEF.” Isabel complementa ao dizer que atitudes marcantes como essa influenciam mais pessoas a seguirem esse exemplo.
Luis Rubiales anunciou sua renúncia ao cargo de presidente da Federação Espanhola no dia 10 de setembro. Porém, muito se discute sobre o quanto essa decisão foi influenciada pela repercussão do caso ao redor do mundo, tendo em vista os seus últimos pronunciamentos nos quais declara que há uma perseguição desmedida e a verdade irá prevalecer. A socióloga Karla Gobo afirma que a pressão social e política foi fundamental para essa deliberação quando se atenta para o fato de que ele, em nenhum momento, assumiu a responsabilidade pelo seu ato. “É mais um caso que se repete, a transferência da culpa para outrem. Já vimos esse filme em vários outros momentos, principalmente quando envolve grupos historicamente minorizados”, completa Karla.
Além de Jenni Hermoso formalizar a denúncia de assédio sexual contra Rubiales, a jogadora ainda o acusa de coerção e diz ter sofrido ameaças por parte do ex-dirigente. Esse não é um caso isolado no futebol feminino; no entanto, esses episódios são frequentemente abafados pelas instituições e dificilmente são denunciados. Por esse motivo, Karla destaca a importância de tornar público e levar às autoridades acontecimentos como esse para o desenvolvimento da modalidade: “Essas ações de figuras de grande expressão pública têm um caráter didático para a própria população. Isso é fundamental para consolidar mudanças em torno de um projeto civilizacional de maior respeito e inclusão com grupos que foram alijados historicamente.”
A RFEF escolheu Montse Tomé para assumir o cargo de técnica da seleção espanhola e substituir Jorge Vilda. A treinadora de 41 anos atuou como jogadora e passou por Barcelona, Levante e Oviedo, até anunciar a sua aposentadoria dos gramados em 2012 e será a primeira mulher da história a comandar a equipe feminina do país.
O impacto de casos discriminatórios no futebol espanhol
O assédio sofrido por Jenni Hermoso não foi o único caso relacionado ao futebol espanhol que gerou manifestações e debates sociais no mundo inteiro. Ainda neste ano, o jogador brasileiro Vinícius Júnior protestou contra atos racistas cometidos pelas torcidas adversárias durante partidas, que constantemente eram justificadas pelas suas comemorações após marcar um gol. O atleta do Real Madrid se pronunciou nas redes sociais após ser expulso nos acréscimos do jogo contra o Valencia pelo Campeonato Espanhol e ter sido vítima de racismo por parte da torcida presente no estádio Mestalla. “Não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam.” desabafou o jogador no post. “Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas.”
O caso de racismo evidenciou a falta de postura da imprensa espanhola em repudiar os atos racistas, além da ausência de punições por parte de diretores da liga nacional de futebol do país e da RFEF. Javier Tebas, presidente da LaLiga, se posicionou contra Vinícius Jr., afirmando que o brasileiro deveria “se informar adequadamente” antes de criticar a liga. Depois, em um novo pronunciamento, reforçou que as falas do jogador eram injustas e que não poderia permitir que a imagem da competição fosse manchada, resumindo os atos racistas sofridos como um caso muito específico.
A preocupação com a reputação também ficou exposta na carta de renúncia de Luis Rubiales, em que ele diz não querer que o futebol espanhol seja prejudicado por toda campanha ‘desproporcional’ em cima do caso e que a decisão de renunciar teria sido motivada por saber que a sua saída permitiria a realização do sonho do país de trazer a Copa do Mundo. Para Carlos Massari, um dos criadores da página “Copa Além da Copa”, um dos impactos negativos consequentes desse cenário discriminatório está muito mais relacionado à imagem do que questões financeiras: “O futebol espanhol é muito poderoso, com uma das ligas mais valiosas do planeta e o país provavelmente será uma das sedes da Copa do Mundo de 2030. É difícil imaginar que esses problemas tragam impactos financeiros negativos diretamente, porém, sem dúvidas há uma preocupação com reputação, principalmente com a escolha de sede do mundial se aproximando.”
No entanto, o futebol pode desempenhar um instrumento importante para a visibilidade desses debates sociais no país europeu e no mundo inteiro, apesar da postura dos poderosos do esporte. Carlos acredita que o título mundial feminino da Espanha junto ao caso de assédio, fizeram com que os assuntos do consentimento e do assédio sexual ganhassem dimensões raríssimas na mídia e na sociedade. “Assuntos como esses, quando em uma grande plataforma como o futebol, alcançam muito mais pessoas”.
Reportagem: Catharinna Marques, Júlia Portes e Manuela Monzo
Supervisão: Julia Bento