Virgindade: lésbicas perdem?
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De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a virgindade é uma construção cultural, social e religiosa que reflete a discriminação de gênero contra as mulheres. Isso porque, durante séculos, ela era apenas considerada “perdida” quando ocorria a penetração na relação sexual, fazendo o ato depender de um homem para acontecer. Essa definição heteronormativa, isto é, que apenas considera relacionamentos cis heterossexuais, ignora os que ocorrem apenas entre mulheres (e ainda exclui as outras formas de se relacionar sexualmente).
A psicanalista Joana Waldorf explica que a questão da virgindade é algo complexo e que o tema é de uma discussão histórica. “No século 19, ocorreu, principalmente na Europa, um aumento de discursos por parte da medicina, acerca da sexualidade e do ato sexual, compostos por categorias e conceitos, como os de práticas de acordo com a norma e as desviantes dela”. Estas eram associadas a qualquer ato que não tivesse como finalidade a procriação, logo, o sexo anal e a masturbação, por exemplo, eram vistos como perversos e patológicos.
A ideia de sexo como sinônimo de procriação, que faz referência ao pensamento cristão, fez parte de um projeto econômico com o objetivo de tirar a Europa da crise pós peste bubônica. Com uma baixa populacional, essa fala serviu para dominar corpos e sexualidades, esclarece a psicanalista. A partir disso, o número populacional dobrou naquele período. Esse sentido permanece até os dias atuais em declarações biologicistas e médicas sobre sexo enquanto sinônimo de reprodução, o que não combina com esse pensamento é invisibilizado ou patologizado.
O termo virgindade, que segundo o dicionário da língua portuguesa é definido como “estado daquilo que está intacto”, ganhou maior notoriedade nos últimos anos por pessoas que não concordam com essa definição. A ginecologista e ex-participante do Big Brother Brasil 2020, Marcela Mc Gowan, questiona o termo e o sentido pela busca de uma definição, por ser, segundo ela, algo tão íntimo. “Do ponto de vista médico, me interessa saber se a pessoa tem ou já teve qualquer contato sexual para saber orientar sobre cuidados. Se ela considera ou não que fazer sexo oral conta como ‘perder a virgindade’ não me importa”, afirma a médica.
O momento de perda da virgindade pode ser um um motivo de dúvida para as mulheres lésbicas, bissexuais e pansexuais por ser enxergado por muitos na sociedade como uma exigência de “certificado da virgindade”, em que se resume na penetração e rompimento do hímem como ponto essencial. Mesmo sendo sexualmente ativas, muitas mulheres LGBTQ+ são questionadas se são virgens ou não. “Me incomoda muito essa ideia de que nós, mulheres que se relacionam com outras do mesmo sexo, precisamos ter nossas relações legitimadas por terceiros”, desabafa a estudante de jornalismo, Isadora Ferreira, de 22 anos, que é bissexual.
A estudante confessa também que ter a virgindade questionada por outros a incomoda menos hoje do que na adolescência e justifica que essa melhora é pela a relação atual que tem com o próprio corpo, de autoconhecimento e segurança. A psicóloga Sandra Casagrande explica que esses julgamentos em torno da primeira vez sexual podem afetar significativamente a satisfação, a autoeficácia e o funcionamento nos atos futuros. “Os efeitos parecem ser mediados por uma variedade de fatores estressores, como crenças sobre virgindade, idade, homofobia internalizada e estigma sexual percebido, juntando à sintomatologia depressiva e ansiosa e a satisfação com a vida”, a terapeuta afirma.
Para ajudar pacientes com esse tipo de caso, Sandra os atende seguindo a abordagem Terapia Cognitiva Comportamental (TCC), que utiliza ainda técnicas específicas para redução da ansiedade, resolução de problemas e maior eficácia nos relacionamentos interpessoais. “Os pensamentos desencadeados por uma situação afetam como uma pessoa sente-se emocionalmente ou se comporta. Quando estão em estresse, as pessoas frequentemente têm pensamentos distorcidos de certa maneira”, a terapeuta esclarece. O TCC ajuda esses pacientes a identificarem as reflexões adulteradas, avaliarem quão falsas são e encontrar modos alternativos de pensar.
Com esse tabu imposto pela sociedade, muitas mulheres ainda sofrem a pressão da virgindade sobre elas. Podendo ficar em dúvida se isso de fato é considerado como perda ou, se necessariamente, precisa acontecer uma penetração, elas procuram a médica ginecologista e muitas vezes uma psicóloga para tratar dessa questão. De acordo com Joana Waldorf, “É necessário expandir a ideia que temos sobre sexo, a lógica da penetração como imperativo para validação de uma relação sexual é a mesma lógica que tem como base o pensamento de que o sexo só se concretiza se houver procriação”.
A ida ao médico ginecologista após a primeira relação sexual é importante para fazer exames e saber como se prevenir de possíveis doenças sexualmente transmissíveis. No entanto, apesar do costume considerado “comum”, ele pode não ser tão simples quando se trata de mulheres que têm relações com outras mulheres. Isso porque ainda existem preconceitos praticados, inclusive, por médicos ginecologistas.
Isadora acredita que existe um tabu em cima de relações homoafetivas no geral, e revela que já foi a médicos que ignoraram a necessidade de realizar exames em pessoas homossexuais. “Já me deparei com médicas extremamente despreparadas, que sequer me encaminharam para fazer exames, mesmo sabendo que eu tenho uma vida sexual ativa”. Apesar disso, ela relata que, em sua primeira vez na ginecologista, a médica explicou a importância de fazer exames regularmente, já que não existem muitos recursos para prevenção de DSTs entre mulheres.
Quando se trata de relacionamentos lésbicos, é importante não se basear na heteronormatividade, pois isso “é legitimar a existência de outros tipos de relacionamento, abrir espaço para uma educação sexual que aborda cuidados, prevenção, riscos e até mesmo prazer, independente de orientação sexual”, diz Marcela Mc Gowan. Além disso, essa ideia cria o estereótipo de que sexo é apenas relacionado à libido, o que pode dificultar na criação de uma conexão emocional no ato. “A primeira relação sexual que eu tive foi com uma mulher, o que foi muito importante para mim, pois percebi que sexo não é só tesão, mas parceria também”, conta Isadora.
Matéria por: Juliana Gomes, Laura tito e Luana Maia
Supervisão: Gabriela Leonardi e Juliana Ribeiro