A travessia de Nana Moraes
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Do alto da escada, uma mulher baixinha, de cabelos curtos e voz suave me convidou a entrar no Retrato Espaço Cultural, um casarão histórico nos fundos de Santa Teresa. Com os olhos atentos e um sorriso acolhedor, a jornalista e fotógrafa Nana Moraes me deu um abraço, sentou no sofá branco da Galeria Retrato e, durante um bom café, permitiu que eu conhecesse suas histórias, sonhos e projetos.
O que eu quero ser quando crescer
Nana nunca sonhou em ser fotógrafa. Formada em jornalismo pela PUC-SP, a filha do fotógrafo José Antônio Moraes e irmã do fotógrafo Sérgio Moraes acreditava que já tinha familiares suficientes no mundo da fotografia. Ela queria escrever e contar histórias. Motivada pela necessidade de trabalhar, tornou-se secretária da Agência Angular, um grupo de fotojornalistas gerido por João Bittar. Segundo Nana, foi ele o grande responsável pelo seu início na fotografia. “Ele achava um absurdo e falava: que história é essa de escrever? Você tem que ser fotógrafa. Seu pai é fotógrafo, seu irmão é fotógrafo. E eu só respondia: mas é justamente por isso que eu não quero!’’, ri.
Contrariada, aceitou o convite de Bittar para tirar algumas fotos de Jânio Quadros, que começava a despontar como possível candidato para a prefeitura de São Paulo na década de 80. Com o bom resultado do seu primeiro trabalho, Nana percebeu que as fotos também contam histórias e começou a trabalhar com o pai. “Ninguém começa a fotografar fotografando. Você tem que passar por experiências para entender em qual área quer desenvolver seu trabalho. Hoje, a fotografia me faz ser quem eu sou.”
Com mais de mil capas publicadas, Nana está há cerca de 30 anos no mercado. Seis vezes vencedora do Prêmio Abril de Jornalismo e premiada pela Associação Brasileira de Propaganda em 2007 e 2011, ela já fotografou grandes nomes da cultura brasileira, como Elza Soares, Gal Costa, Chico Buarque, Laura Cardoso, Gilberto Gil, Renata Sorrah, Andréa Beltrão e Caetano Veloso.
Mas a vontade de explorar a palavra escrita nunca foi descartada. Como trabalho de conclusão de curso, escolheu fazer um ensaio fotográfico com mulheres do Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo. O contato com essas mulheres durante a monografia foi o primeiro passo de um projeto que ganharia força anos depois. “Eu me formei em 1986. Em 2007 eu dei o meu grito de ‘agora eu vou fazer o que eu quero’ e comecei a criar a trilogia DesAmadas. Era um sonho guardado, mas sempre alimentado”.
Na trilogia, Nana revela histórias de mulheres discriminadas e estigmatizadas pela sociedade brasileira. No dia 11 de setembro de 2011, data lembrada sem muito esforço, lançou o primeiro volume da série. Em “Andorinhas”, ela retrata a vida de cinco prostitutas que trabalham na Rodovia Presidente Dutra. O livro intercala fotografias em filme P&B com asa 3200, conversas e imagens denominadas fototinta, técnica desenvolvida pela fotógrafa desde 1997 que mistura tinta e fotografia para criar retratos coloridos. Para Nana, o resultado final foi a realização de um sonho antigo: “Eu demorei mais de 20 anos para tomar coragem de ser ‘o que eu queria ser quando crescer’. Eu me realizei quando consegui juntar as duas linguagens que eu tanto sempre desejei”.
A trajetória do livro Ausência
Uma coisa leva a outra. Foram as andorinhas que inspiraram Nana em seu próximo trabalho, o livro “Ausência”. “As mulheres que trabalhavam como prostitutas sempre me falavam que prostituição não era crime e que elas não eram criminosas. Eu fiquei com isso na cabeça e percebi que seria enriquecedor me encontrar com mulheres que estavam em situação de presídio”, explica. Nana passou quatro anos tentando entrar no sistema penitenciário até finalmente conseguir a aceitação de um projeto no presídio feminino Nelson Hungria, no Complexo de Gericinó, no Rio de Janeiro.
A produção do livro começou com o projeto “Travessia”, que reuniu 16 mulheres e realizou a correspondência fotográfica entre mães presidiárias e seus filhos e filhas distantes. Após conseguir a autorização de seis famílias, ela viajou para conhecer histórias de amor, dor e esperança. Para representar tudo que ouviu, Nana resolveu costurar os fragmentos das cartas e fotografias em retalhos. Fez colchas de casal, cobertores e até toalhas de banho. A ideia veio de um catálogo que ganhou da sogra sobre a exposição “Arpilleras da resistência política chilena”, no Museu da Verdade. Na mostra, a história da Ditadura Chilena é contada em arpilleras, técnica têxtil utilizada como meio de expressão por mulheres que bordavam em sacos de farinha durante o período ditatorial.
Em 2017, “A Trajetória do Livro Ausência” foi exposta pela primeira vez no Centro Cultural Correios durante o FotoRio e rendeu à Nana a medalha Jorge Careli de Direitos Humanos, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O livro “Ausência” foi lançado em 2022, reunindo os desdobramentos da exposição e uma outra forma de escuta para as histórias que constroem esse trabalho.
E de onde vem o interesse em contar essas histórias? Perguntei. Rindo, ela disse que essa é uma pergunta que ela nunca sabe como responder. “Eu não tenho interesse em pesquisar sobre coisas consolidadas ou ‘vencedoras’. O que me interessa é a maneira como essas mulheres lidam com as dificuldades. Como elas conseguem ter força? Como elas superam? Como elas lutam?”, reflete.
Só sei que nada sei
Cada trabalho de Nana é um estímulo à sensibilidade de quem o consome. Ao explorar várias técnicas para construir uma narrativa, sua criatividade surge em um processo quase socrático de se colocar como aprendiz: “A primeira coisa é entender que você não sabe nada. É um processo que te obriga a abrir seu coração, se encontrar com seus preconceitos e enfrentar cada um deles. Você tem que se desfazer de muitas formas do que você aprendeu a pensar, e isso dói.”
A postura de Nana é política, tanto na vida pessoal, quanto em seu trabalho. Para ela, escutar é transcender, e a fotografia sem escuta não passa de uma reprodução do poder. Escolhendo escutar, Nana consegue abrir mão do seu protagonismo para contar histórias tão delicadas. “O meu lugar nesse trabalho é de admiração, de trazer à tona essas histórias por elas, e não por mim. Eu sou só um cavalo que trago as histórias no lombo.” “Ou uma égua, né?”, ri.
Nana Moraes aos 61 anos. Foto: Duda Reis
A luta contra o câncer
Aos 48 anos, Nana foi diagnosticada com câncer. Ela conta que nunca teve dúvidas em relação a realização do tratamento. Perguntou ao médico qual seria sua chance de ficar boa e, com uma resposta positiva, abraçou o otimismo para seguir em frente. Durante o primeiro ciclo de quimioterapia, desenvolveu uma sequela neurológica, mas que nunca foi um impedimento para sua vida.
Com dores constantes, Nana tem dificuldade para andar longas distâncias, às vezes usa bengala e enfrenta com calma as escadas. Mas ela dá um jeito. “Quem é que não tem dor? Eu não vou dizer ‘Por que eu? Por que isso? Afinal, por que não eu? Doença não dá em poste, dá em gente. Eu não deixo de fazer nada. Pode ser devagar, pode demorar mais, mas eu vou.”
Retrato Espaço Cultural
A arte de Nana Moraes também tem um endereço fixo. O Retrato Espaço Cultural fica na Rua Santa Cristina, nº 6, e tem entrada pela Rua Benjamin Constant, nº 115. A casa, que também abriga o estúdio da fotógrafa, recebe exposições, oficinas, eventos de música e o bar e restaurante Birosca.
Vista da escada do Retrato Espaço Cultural, entre os bairros da Glória e Santa Teresa. Foto: Duda Reis
Antigo “Retrato Serviços Fotográficos”, o local era o estúdio de seu pai, falecido em 1995. Em 2016, com a onda da desvalorização da cultura e o fechamento de diversos espaços culturais, Nana resolveu ir na contramão para realizar outro sonho antigo. Junto com o marido, Carlos Gadelha, deu início ao projeto e inaugurou a nova casa em 2017, com a exposição “Retratos e Relíquias”. Além dos trabalhos de Nana, a exposição também reuniu fotos do acervo do pai, registradas entre 1960 e 1990, do irmão, e do filho, Ricardo Moraes.
A decisão de manter o “Retrato” no nome veio da principal motivação do espaço, a preservação da memória. “Se não fosse para manter a memória do meu pai, não faria sentido. Se não fosse ele, nada disso teria nascido e eu queria que a semente que ele plantou fosse regada até quando possível”, diz.
Com a chegada da pandemia no início de 2020, o espaço teve que ser fechado. No retorno, o sinal para continuar veio de forma simbólica e inesperada: uma árvore que cresceu na parede ao lado da escada principal. “A árvore tem uma raiz incrível. É impressionante. Eu só pude entender isso como um sinal de prosperidade, então comecei a investir cada vez mais”.
Com raízes e galhos fortes, a árvore fica ao lado da Gruta de São Jorge. Foto: Duda Reis
O espaço é dividido em várias áreas. O Jardim Rosas do Asfalto, onde cresce uma linda jabuticabeira, é um local em homenagem ao seu pai e à Marielle Franco. O Espaço Educação Valda Nogueira homenageia a fotógrafa carioca, falecida em 2019, e, atualmente, recebe um curso do Walter Firmo. A casa também abriga as galerias Retrato, Ponto G e Escombros, a laje e o Birosca. Na área externa, foi construída a Gruta de São Jorge, que convida todos os visitantes a deixarem uma imagem da sua religião, seja ela qual for.
O Birosca é gerenciado por Ricardo Sant’Anna e Lígia Moraes, filha mais velha de Nana. O funcionamento é de quarta a sexta, de 17h às 22h, sábado, de 13h às 22h, e domingo, de 13h às 21h. Toda sexta, o bar organiza o Birosca Disco, com DJs de diversos gêneros musicais.
Andressa Girardelli, bartender do Birosca, prepara uma carta de drinks variados. Foto: Duda Reis
Na decoração dos ambientes, Nana explora o valor dos escombros, das paredes descascadas e das rachaduras naturais. Para ela, cada ruína é uma memória. “As paredes contam histórias seculares, e já tem parede branca demais nesse mundo. A ideia é trazer a memória, as vísceras, o sangue, o suor. Não aquela coisa limpinha, bonitinha. Isso não me interessa.”
Atualmente, o Retrato Espaço Cultural recebe a exposição gratuita “Teatro”, com fotos de Nana Moraes e dramaturgia de Marcio Abreu, nas galerias Ponto G e Escombros. Toda quinta, a partir de 19h30, também acontece o “Música na Laje”, programação que reúne artistas da música instrumental carioca com curadoria da flautista Sofia Ceccato.
Parte da exposição “Teatro” na Galeria Escombros. Foto: Duda Reis
“O espaço traz a ideia da diversidade, do acolhimento, do amor, do fazer por resistência e do fazer por luta. É um lugar muito simbólico, e eu gosto de dizer que é uma sementeira. Uma sementeira não só para a minha família, mas para a cultura. Todo mundo que passa por aqui, de alguma forma, deixa a sua semente”, conclui Nana, com um sorriso estampado no rosto.
Nana e Lígia Moraes, filha e proprietária do Birosca. Foto: Duda Reis
Os próximos passos
Nana ainda tem muitos planos para o futuro. Em plena produção, ela está trabalhando no último livro da trilogia que começou a desenvolver em 2007. “Alma” contará a história de cinco mulheres que atuam no movimento da população de rua de Salvador. Para esse projeto, a proposta é trabalhar apenas com materiais tirados do lixo. “Eu trago histórias de mulheres das ruas de Salvador desde a independência do Brasil. Histórias que os livros não contam, mas que a rua conta.”
Diferente dos encontros com mulheres prostitutas e em situação de presídio, a questão da população de rua é um assunto em pauta, o que permite que Nana contribua para a discussão a partir de um outro olhar. Segundo ela, é isso que torna tudo mais importante. “Este livro, de alguma forma, leva os outros dois exatamente para onde eu queria: um lugar que me coloca como aprendiz”, conclui.