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No mês em que é celebrado o Orgulho LGBTQIA+, um histórico dos avanços e retrocessos de personagens queer no audiovisual

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   Helena (Priscila Sztejnman) e Clara (Regiane Alves) em cena da novela “Vai na Fé” (Reprodução/TV Globo)

No dia 10 de maio, estava previsto um beijo na novela “Vai na Fé”, da Rede Globo, entre as personagens Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman). Para surpresa dos telespectadores, a cena foi cortada. Em nota, via assessoria de imprensa, a emissora disse: “Toda novela está sujeita a edição. Uma rotina que atende às estratégias de programação ou artísticas. Isso, inclusive, é sinalizado nos resumos de capítulos divulgados pela Globo”. No último sábado, dia 3 de junho, outro beijo foi cortado da trama. Dessa vez, entre os personagens Vini (Guthierry Sotero) e Yuri (Jean Paulo Campos).

– Eu acho que, no mínimo, é uma agressão muito grande, muito explícita à comunidade LGBTQIA+. Já é muito raro, muito difícil, a gente ver essas histórias, essas vivências nesse espaço. Nenhuma justificativa (da Globo) é minimamente aceitável e plausível. É muito assustador que a gente ainda esteja, em 2023, num momento de discutir isso – disse a estudante de Cinema, Luiza Brasil, que acompanha a novela. – É realmente uma agressão, dá um baque ver que é ainda um tabu tão grande a existência desses afetos, sendo que não tem absolutamente nada de errado nisso.

“Vai na Fé” não foi o único produto que a Globo exibe atualmente a ter cenas de afetos homoafetivos cortadas. A segunda temporada da série “Aruanas” foi lançada no Globoplay (plataforma de streaming da Globo) em novembro de 2021, com cenas de beijos entre as personagens Olga (Camila Pitanga) e Ivona (Elisa Volpatto). Quando estreou na TV aberta em maio deste ano, essas cenas foram deletadas na edição. A atriz Elisa Volpatto desabafou em seu Instagram. “Sinceramente, há avanços que a gente faz em sociedade que a gente não pode voltar para trás. Rede Globo, que tristeza. Cortaram de novo a cena de duas minas se pegando. Com tanta cena hétero mais fuerte do que essa passando em horário nobre bem nobre”. Na versão para streaming, as sequências permanecem sem alteração.

Não é novidade a emissora cortar afetos de personagens homoafetivos. O caso mais emblemático foi na novela “América”. A cena, que seria a primeira de beijo entre personagens do mesmo sexo, foi gravada, mas vetada na edição final do último capítulo da trama. O primeiro beijo veio em uma produção mais discreta do SBT, “Amor e Revolução” (2011), entre as personagens das atrizes Luciana Vendramini e Gisele Tigre. Na Globo, foi no último capítulo de “Amor à Vida”, no início de 2014, entre Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso). Ele ocorreu meses depois do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicar a Resolução 175, em maio de 2013, que passou a garantir aos casais homoafetivos o direito de se casarem no civil. Com a resolução, tabeliães e juízes ficaram proibidos de se recusar a registrar a união.

A censura em “Vai na Fé” e em “Aruanas” soa como regressão em um histórico já de altos e baixos na representação de personagens LGBTQIA+ no audiovisual. Temas homoafetivos são observados no cinema desde 1919 com “Anders als die Anderen”, dirigido por Richard Oswald, contando a história de um violinista que se mata após ser chantageado com uma lei que punia severamente a pederastia. Em 1930, Hollywood institui o Código Hays, uma cartilha feita pelo advogado Will Hays, a pedido dos grandes estúdios de cinema, como um guia moral para os filmes. Entre as principais proibições, estavam cenas de sexo apresentadas de maneira imprópria, cenas românticas prolongadas e apaixonadas, retratar religiosos de maneiras pejorativa ou cômica, destacar o submundo, ofender crenças religiosas, tornar vícios, jogos e bebidas atraentes, enfatizar a violência, o uso de drogas, a nudez e o comportamento homoafetivo.

Para além de mostrar um relacionamento erótico e afetivo, também são atribuídas atributos queer aos personagens, deixando a não-heterossexualidade deles subentendidas. Isto era feito dando características masculinas para personagens femininos e, principalmente, características femininas para personagens masculinos. Esses personagens tendem a ser vilões e, ao final da história, sendo punidos por algo moralmente errado.

A cineasta e pesquisadora de cinema queer, Ana Araujo, ressalta que o cinema de terror dessa época foi o principal espaço onde a homossexualidade era codificada em vilões. Ela destaca James Whale, diretor abertamente gay, e suas obras como “The Dark Old Hour” (1936) e, principalmente, “Frankestein” (1931).

– Não era só um subtexto da monstruosidade e dessa junção entre a perversidade com homossexualidade, também tinha claramente tipo um outro muito forte, principalmente nas duplas – pontua ela. – Essa relação sempre foi muito codificada como gay. Em relação ao “Frankenstein”, era muito comum nessa época você ver um “casal”, esse médico e assistente, tentando recriar a vida de maneira artificial.

Ana ainda destaca o filme “White Zombie” (1932), em que o vilão se interessa pela heroína, porém no meio do caminho ele demonstra que, na verdade, está obcecado pelo herói. Era comum, nesse momento, um longa mostrar a rivalidade entre dois homens que brigavam pelo amor ou atenção de uma mulher. Em muitos casos, esse triângulo amoroso podia ser interpretado como uma repressão sexual entre os dois personagens. Esse afeto, ou repressão, era mostrado de maneira extremamente violenta e negativa.

O queer coding – como ficou conhecido essa codificação da homossexualidade – também pôde ser encontrada em filmes como “Rebecca, a mulher inesquecível” (1940), “Festim Diábolico” (1948) e “Lawrence das Arábias” (1962). O código teve fim em 1969, muito influenciado por movimentos gays. O principal deles foi a Revolta de Stonewall, uma série de manifestações espontâneas de membros da comunidade LGBTQIA+ contra uma invasão da polícia de Nova York que aconteceu nas primeiras horas da manhã de 28 de junho de 1969, no bar Stonewall Inn, localizado no bairro de Greenwich Village, em Manhattan, em Nova York, nos Estados Unidos.

Nessa época, outro fato impactou a produção cinematográfica: a morte de Walt Disney, em 1966. Os estúdios Disney passaram por uma forte crise e, na tentativa de emplacar uma nova técnica de animação – a xenografia –, eles deixaram de lado o luxo presente em obras da sua Era de Ouro e de Prata (1937 – 1967). Filmes como “Robin Hood” (1973), “O Cão e a Raposa” (1981), “O Caldeirão Mágico” (1985) não foram bem recebidos e fracassaram com o público. Em 1989, a Disney volta ao padrão luxuoso que a consagrou. Eram filmes mais modernos e populares. Outra característica foi incorporar mais músicas às suas narrativas, quase transformando-as em musicais. Além disso, são filmes mais maniqueístas, onde todos os heróis são muito bons e os vilões são muito maus.

O primeiro filme dessa era, conhecida como Renascença, foi “A Pequena Sereia” (1989). Na história, a vilã se chama Úrsula, uma criatura meio-polvo, ‘meio-lula’ de pele roxa, cabelos brancos, luxuosa e extravagante. A sua imagem é inspirada em uma drag queen chamada Divine, conhecida também como uma atriz de ‘filmes B’ que misturavam sexo, vingança e sadismo. Isso acontece em uma década especialmente delicada para a comunidade LGBTQIA+. No início dos anos 80, a epidemia de Aids estigmatizou ainda mais homens que se relacionavam sexualmente com outros homens. Na época, havia uma crença que a doença estava ligada com o estilo de vida e comportamento de homens gays e ficou conhecida como “peste gay”.

Nos filmes subsequentes, a Disney seguiu incorporando personagens com estereótipos queer. É o caso dos vilões Jafar (“Aladdin” 1992), Gaston (“A Bela e a Fera”, 1992) Scar (“O Rei Leão”, 1994), Governador Ratcliffe (“Pocahontas”, 1995) e Hades (“Hércules”, 1997). Todos são extravagantes, vaidosos e afeminados – em especial nos números musicais. Também são sádicos e cruéis, confrontando com o herói másculo que, com sua amada, formam um casal hétero, cheio de virtudes e coroados com um final feliz. Até em live actions, como “High School Musical” (2006), podemos observar esses personagens. Ryan (Lucas Grabeel) é um personagem que vai ganhando espaço ao longo da trilogia, mas nunca consegue ter uma trama própria. Repleto de estereótipos, como adorar artes, usa rosa e ser afeminado, ele é capacho da irmã malvada Sharpay (Ashley Tisdale). Em julho de 2020, o diretor da saga, Kenny Ortega, revelou que o personagem era, de fato, gay.

A psicanalista Ana Paula da Costa Gomes afirma que assistir vilões codificados como personagens queer em filmes infantis pode ser muito prejudicial na formação de um indivíduo que desde cedo percebe não se encaixar na heteronormatividade.

– A relação de identificação se dá por uma projeção, neste caso literal, nas telas audiovisuais, em que o espectador pode olhar de forma ampliada e espelhada o que é seu, o que ele é, mas que sem essa lente de aumento não consegue ver. Quando se colam vilões a grupos que sofrem com a discriminação e segregação isso só intensifica qualquer tipo de preconceito – diz a psicanalista.

No Brasil, é possível identificar grandes problemáticas na representação de personagens LGBTQIA+ em seu principal produto cultural: as novelas. O primeiro personagem gay do gênero foi Rodolfo Augusto (Ary Fontoura) em “Assim na Terra Como no Céu” (1970). Na trama, porém, em nenhum momento as palavras “gay” ou “homossexual” foram ditas. Nos anos 90, duas novelas tentaram retratar relações homoafetivas, mas foram vítimas de cerceamento. Em “A Próxima Vítima” (1995), André Gonçalves interpretou Sandrinho. O ator chegou a ser espancado e perseguido na rua e durante três meses da exibição da novela, precisou andar com seguranças na rua. Já em “Torre de Babel” (1998), Christiane Torloni e Silvia Pfeifer interpretavam, respectivamente, o casal Rafaela e Leila. A rejeição ao romance das duas fez com que os rumos da história fossem alterados. Já havia previsto na sinopse a morte de Rafaela durante uma explosão no shopping da trama e depois disso, Leila iria viver uma amizade com uma outra personagem feminina. Quando saiu nos jornais essa notícia, a amizade foi interpretada como um romance e causou indignação no público. O resultado foi a morte das duas personagens na explosão do shopping.

Os anos 2000 veio com avanços e retrocessos. Após o veto em “América” e o beijo de “Amor à Vida”, ocorreu a polêmica mais marcante. Em “Babilônia” (2015), Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg formavam um casal que mantinham uma relação de 40 anos e criavam um filho juntas. Em seu primeiro capítulo, a novela apresentou duas cenas em que Teresa (Fernanda) e Estela (Nathalia) se beijam carinhosamente. O senador Magno Malta e o deputado federal João Campos, integrantes da Frente Parlamentar Evangélica, emitiram nota em que pedem boicote à novela, por fazer “apologia ao mal” e visar “destruir famílias”. Vale lembrar que esse foi um momento de um avanço conservador no país. A novela estreou um dia depois da primeira grande manifestação contra a recém-empossada Dilma para seu segundo mandato. Um ano depois, essas manifestações culminaram no impeachment da presidente e o início de um governo de direita e extrema-direita no país.

Nos últimos anos, também foram observados mais personagens trans. “A Força do Querer” (2017) teve dois personagens: Ivan (Carol Duarte), um homem trans, e a travesti Elis Miranda (Silvero Pereira). Foi a primeira novela no horário nobre a retomar o tema após o fracasso de “Babilônia”. De lá pra cá, houve diversas novelas com beijos, incluindo em outro horários. Porém, todos eles ou são selinhos, ou são dados a contra-luz ou apenas nos últimos capítulos. A censura, como ocorre atualmente, não era observada há bastante tempo.

No cinema, também houve avanços. Nos últimos anos, três filmes se destacaram na temática, sendo vencedores de Oscar: “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), “Moonlight – Sob a Luz do Luar” (2016) e “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017). Também houve filmes e séries direcionados para os jovens como “Com Amor, Simon” (2018), “Young Royals” (2021) e “Heartstopper” (2022). Em 2021, a Disney lançou a animação “Luca”, considerado por muitos uma metáfora LGBTQIA+, mesmo a produtora negando. Ana afirma que vê com bons olhos o aumento de representatividade no audiovisual, mas alerta que ela acontece de forma “sanitizada”.

– Eu acho incrível, por um lado, que hoje você abre o Disney+ (serviço de streaming da Disney) e toda série ou filme tem um personagem LGBT. Mas você está mesmo representando? Porque são sempre coadjuvantes, eles não podem ter um protagonismo grande, você nunca pode falar sobre isso. É a mesma questão de “Com Amor, Simon”, que muitas pessoas não gostam, porque realmente é um filme muito hétero, mesmo sendo um filme gay. – afirma Ana.

O jornalista, crítico, pesquisador especializado em cinema e professor da ESPM Rio Pedro Butcher concorda que há muito que avançar, mas que há bons exemplos fora do cinema mainstream.

– É importante saber que tem muita coisa interessante no cinema independente e que muitas vezes também não ganha muita visibilidade no mercado. São realizadores que conseguem mudar um pouco a estrutura. Eu citaria alguns dois filmes do Recife como “Corpo Elétrico”, do Marcelo Caetano, e “Seguindo Todos os Protocolos”, do Fábio Leal. São alguns exemplos de filmes recentes do Brasil, que são independentes e circulam pelos festivais. – destaca Butcher.

 

Reportagem: Bernardo Erthal, Luiz Abreu e Mateus Gomes

Supervisão: Lorenna Medeiros



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