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Injúria racial x racismo: do legislativo aos estádios brasileiros

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No dia 26 de abril, durante a partida entre Corinthians e Boca Juniors (ARG) pela Copa Libertadores da América, o torcedor do Boca Juniors Leonardo Ponzo foi detido pela polícia militar de São Paulo após ter imitado um macaco em direção aos torcedores do Corinthians. As imagens foram registradas por um corintiano e entregues à polícia, que prendeu Ponzo no intervalo da partida, e o encaminhou para a Delegacia de Polícia de Repressão e Análise de Delitos de Intolerância Esportiva. 

Enquadrado no crime de injúria racial, o torcedor argentino pagou fiança de 3 mil reais, sendo solto no dia seguinte (quarta-feira, 27/4). Ainda no mesmo dia, Leonardo foi acompanhado pelo consulado da Argentina ao aeroporto, de onde retornou para casa. O caso gerou grande repercussão, recebendo uma grande indignação do público nas redes sociais. Muitas pessoas ficaram confusas com a rapidez com que o torcedor foi solto, e outras, revoltadas com a saída praticamente impune de Leonardo Ponzo do Brasil. 

O desfecho do caso se explica pela razão de que o argentino foi acusado de injúria racial, e não de racismo. Enquanto o crime de injúria racial permite fiança, o crime de racismo é imprescritível e inafiançável. Apesar de ambos serem delitos relacionados á discriminação pela cor da pele, possuem uma série de disparidades tanto em sua aplicação quanto no seu  julgamento. Assim, qual seria a diferença entre injúria racial e racismo?

Torcedor do Boca Juniors é detido no jogo contra o Corinthians por imitar macaco; vídeo | corinthians | ge

Imagem: Bruno Cassucci

O crime de racismo, na verdade, são diferentes crimes previstos, quase todos, na Lei n. 7.716/1989. A lei estabelece várias condutas criminalizadas e que dizem respeito à discriminação racial em setores como ensino, trabalho e saúde. Em meados dos anos 90, essa lei foi alterada para ampliar a criminalização, passando a abarcar de maneira mais ampla os discursos racistas. O professor da FGV-Rio e doutor em direito público pela UERJ, Wallace Corbo, explica que foi nesse cenário em que surgiu a injúria racial. “O crime de injúria, que consiste em uma ofensa dirigida a uma pessoa (por exemplo, um xingamento) é previsto no Código Penal”. 

Wallace esclarece que para evitar uma desorganização da legislação, optou-se por inserir no próprio Código Penal, no mesmo artigo que criminaliza a injúria, uma hipótese específica  – que é chamada de qualificadora – que é a injúria racial – ou seja, o insulto fundado em raça. “Nós temos diversos crimes incluídos na Lei de Racismo e, no caso específico dos insultos racistas dirigidos a uma determinada pessoa, um crime previsto no Código Penal”. A grande questão é que os tribunais passaram a entender que, como a injúria não se inclui na Lei n. 7.716/1989, não seria classificada como racismo, o que significa que ela não é nem imprescritível, nem inafiançável.

De acordo com o Código Penal Brasileiro, o crime de injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. Já o crime de racismo, previsto em Lei, acontece quando o agressor atinge um grupo ou coletivo de pessoas, discriminando uma etnia de forma geral. Assim, a injúria pode ser entendida como a ofensa voltada para um indivíduo, enquanto o racismo é voltado para um coletivo de pessoas. A injúria pode ser denunciada por qualquer pessoa, que detém o direito de mover um processo contra o agressor. Já o crime de racismo, só pode ser denunciado pelo Ministério Público.

Entenda a diferença entre racismo e injúria racial | Distrito Federal | G1

Imagem: Adelmo Paixão/G1

O Senado Federal aprovou no dia 18/5, um projeto do senador Paulo Paim (PT-RS) que equipara a injúria racial ao racismo. Dessa forma, ambos os crimes passariam a ser julgados da mesma forma. O texto altera a lei dos crimes de racismo para implementar pena de 2 a 5 anos, além de multa, ao indivíduo que injuriar alguém em detrimento de raça ou etnia. A pena pode ser aumentada se a prática ocorrer em grupo. No contexto de atividades esportivas, artísticas ou culturais, haveria não só a prisão, assim como a proibição de frequentar esses locais por 3 anos. O texto agora segue para a Câmara dos Deputados. 

Para o Dr. Wallace, essa mudança poderia encerrar a divergência sobre a caracterização da injúria racial como racismo. O STF recentemente afirmou que essa divergência era equivocada e que a injúria racial é sim uma espécie de racismo. “Diante da desinformação e da resistência de muitas instituições em aplicar este entendimentos, uma nova legislação pode harmonizar as diferentes interpretações e assegurar que também a injúria racial seja sempre tratada como inafiançável e imprescritível”. 

E quando o crime é cometido durante um evento esportivo, como foi o caso do jogo do Corinthians, qual é o procedimento? O advogado da Roçadas e Oliveira e mestrando pela UFF, Leonardo Gielkop esclarece que hoje em dia ainda não existe uma forma correta ou pré-estabelecida de proceder. “Caso exista crime que venha por parte dos torcedores ou por atletas primariamente, precisa-se de identificação e provas do ato”.

Existem situações que são julgadas pela justiça esportiva e em algumas ocasiões, os casos são encaminhados para a justiça comum. Gielkop explica que essa definição depende da identificação ou não do autor do crime, visto que em estádios de futebol pode ser dificultada a identificação por haver uma concentração de milhares de pessoas em um espaço reduzido. “Na maioria das vezes será julgado pela Justiça Desportiva. Só será julgado pela justiça comum caso seja diretamente identificado o autor e o crime cometido (jogador ou torcedor devidamente identificados)”. Leonardo conta da aprovação da PL 4.566/2021, que agrava as penas de injúria racial cometidas em evento esportivo. “Mesmo assim, ainda se tem a dificuldade da identificação da maioria dos autores”.

Ainda dentro do âmbito dos estádios, outro debate que surge é o das formas de punição. Quando não há identificação do autor, é comum que os clubes sejam responsabilizados, com punições como partidas com portões fechados e multas. Para Leonardo, essas seriam maneiras de educar os torcedores, mas não pelos motivos corretos, uma vez que os torcedores deixariam de cometer esses crimes para não prejudicarem seus clubes, e não porque acreditam que as ofensas raciais sejam erradas. “Levando sempre em consideração que não é uma regra mas sim uma forma de tentar reduzir , nem sempre dará certo, como já vimos em muitos casos de clubes punidos que torcedores continuam mostrando o mesmo tipo de comportamento.’’ Para o advogado, as medidas cabíveis deveriam (em um mundo ideal onde sempre é possível identificar o infrator) ser aplicadas individualmente, isentando os clubes da responsabilidade pela atitude de um indivíduo isolado. 

Um levantamento realizado pelo Observatório Racial do Futebol mostra que o futebol sul-americano tem recorde de casos de injúria racial em 2022. Até o dia 18/5, já foram 9 casos registrados pela Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol). 6 na Libertadores e 3 na Sul-Americana. O recorde anterior era de 6 casos, em 2019. Um dos principais fatores para esse fenômeno é a impunidade. Também de acordo com o Observatório, em pesquisa feita em 2020, de 2014 a 2020 foram registrados 190 casos de racismo em estádios brasileiros. Desses, somente 49 foram a julgamento na Justiça Desportiva (25%). 30 foram punidos e 19 absolvidos. 

Gráfico: OGLOBO

O jornalista Henrique Fernandes, repórter de campo do SporTV, opina que não há dúvidas de que a impunidade é o principal problema. “No Brasil, o estádio é um ambiente à parte, o que não pode ser. Um caminho para evoluir nesse sentido é tipificar mais claramente na legislação os incidentes ocorridos no estádio, sejam ofensas racistas, homofóbicas, agressões, brigas ou invasões”. Para Henrique, uma tipificação mais clara facilitaria o  enquadramento na lei e o  julgamento, o que implicaria na diminuição da impunidade, desde que a identificação no estádio também seja feita de maneira correta. 

Ainda sobre punição, o ex-jogador de vôlei e campeão olímpico Nalbert concorda que a punição deve ser individual e muito mais rígida do que é. “Eu vejo que nos estádios de futebol, o comportamento vai muito da crença das pessoas em o direito de xingar, de ofender, de humilhar porque existe um corpo, um comportamento coletivo. Por estarem em uma multidão, as pessoas se sentem menos culpadas, a responsabilidade e a culpa são diluídas em função disso.”

Já Edu “fuiclear”, influenciador esportivo e comentarista da Band, acredita que os xingamentos coletivos têm menos peso do que ações individuais. “O coletivo vai muito mais na onda cultural, obviamente errado, mas tem muito menos valor assim de impacto. Eu acho que um gestual de macaco ou alguma coisa similar a isso é mais impactante quando feito de forma pontual por um grupo pequeno de pessoas”. O jornalista ainda afirma que enquanto não tiver punição severa, a chance de mudar é zero. Recentemente, a CBF anunciou que vai propor para os clubes das quatro divisões nacionais que casos de racismo sejam punidos com perda de pontos.

 A grande incidência de casos de racismo dentro e fora dos estádios está intimamente relacionada à impunidade que existe em relação a esse crime. Existe uma frase do antropólogo Kabengele Munanga que diz: “No Brasil, o racismo é o crime perfeito”. Isso se ilustra pela baixa taxa de definição dos casos e pela constante descredibilização das vítimas, tanto na esfera da justiça esportiva quanto na comum. Com a possível equiparação da injúria racial ao racismo, espera-se que esse crime passe a ser punido com maior severidade e seriedade. O Dr. Wallace explica: “Existe uma baixa responsabilização e uma percepção generalizada de que práticas racistas são toleráveis. Novas mudanças podem ajudar a alterar esse quadro”.

Reportagem: Leo Garfinkel

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