Entenda a importância da cota de tela para exibição de filmes nacionais
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Está em tramitação no Congresso Nacional o projeto de lei 3.696/2023 que renova a cota de tela, expirada em 2021, no cinema e na TV por assinatura até 2043. A PL é de autoria do senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AL) e foi aprovada neste mês pela Comissão de Educação e Cultura. No entanto, o texto passou por uma mudança significativa: a retirada das salas de cinema do projeto.
Segundo o senador Humberto Costa (PT-PE), que fez o relatório na Comissão, o cinema foi removido do projeto devido a uma maior complexidade acerca do setor. A indústria cinematográfica reagiu de maneira negativa com a mudança no projeto. Diversos profissionais subiram a hashtag #BrasilnasTelas. Houve protestos também durante eventos, como o Festival de Gramado e o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Mas, afinal, por que a cota de telas é tão importante?
Em linhas gerais, a cota de tela garante um espaço para a exibição de filmes brasileiros. Um momento de grande polêmica foi em 2019, com o lançamento de “Vingadores: Ultimato”. Na ocasião, o filme da Marvel ocupou mais de 80% das salas de cinema do país, sufocando outros lançamentos nacionais como o terceiro filme da bem-sucedida franquia “De Pernas pro Ar”. Mesmo com bons números de bilheterias, a comédia foi retirada de várias salas do circuito.
Para Felipe Lopes, diretor da Vitrine Filmes, distribuidora de obras premiadas como “Bacurau”, “A Vida Invisível” e “Três Verões”, a cota de tela é uma forma de filmes brasileiros terem concorrência justa com produções norte-americanas. “Ocupar as telas e ocupar esses espaços não ocorre de forma isonômica ou equilibrada. Existem empresas principalmente norte-americanas que têm um poder muito forte e que ocupam quase que predatoriamente um circuito”, diz.
Um dos filmes distribuído pela empresa é “Retratos Fantasmas”, que foi escolhido para representar o Brasil no Oscar de 2024 e teve um aumento de espaços de exibição: saltou de 47 para 60 salas. “Com a escolha para Oscar, o filme entra em uma exceção de que o mercado acaba favorecendo o filme a partir disso. Mas a gente também não pode olhar para ‘Retratos’ como um exemplo que exclui a necessidade. Ele é o documentário mais visto nos últimos oito anos. Então, ele não pode ser usado exclusivamente como ponto de análise de um mercado para todos os documentários enquanto outros foram lançados e não tiveram espaço e tiveram dificuldades de programação”, pondera.
Produtora executiva com foco em políticas públicas no audiovisual, Marina Rodrigues ressalta que a cota de tela é fundamental para movimentar a economia do país. “Ainda que não tenha vontade de ver a obra nacional, ela estando acessível ao público cria a possibilidade de criarmos público em torno de nossas obras, o que a longo prazo se torna benéfico para a economia brasileira como um todo”, disse. Em 2019, por exemplo, o setor audiovisual gerou R$ 24,5 bilhões para o PIB interno brasileiro e mais de 126.000 empregos.
A discussão da cota de tela não é recente e dura quase cem anos. Em 1932, o governo de Getúlio Vargas assinou um decreto que obrigava a exibição de produções nacionais, incluindo cinejornais e outros produtos com intuito educacional. Um ano depois, o número de produções nacionais saltou de 104 filmes para 400. Graças ao decreto, grandes produtoras surgiram no período, entre elas a Atlântida e a Vera Cruz.
A década de 60 e 70 foi marcada por ter a maior produção e recorde de público do cinema brasileiro. Esse marco ocorreu devido a três grandes fatores: o movimento chamado Cinema Novo, que deu um prestígio nunca visto para o nosso cinema; a produção em larga escala e de um cinema considerado mais ‘B’ (filmes de terror, pornochanchadas) em uma região conhecida como Boca de Lixo, em São Paulo; e a criação da Embrafilmes, empresa fundada em 1969 pelo governo militar para produzir e distribuir filmes. Com mais de 100 lançamentos por ano, a fatia de público para filmes brasileiros chegou a 30% nos anos 70. Entre 2012 e 2019 esse índice estava em 13%, e no primeiro semestre de 2023 chegou a apenas 1,3%.
Não é só no Brasil que se discute a cota de tela. Uma das maiores potências do audiovisual da atualidade, a Coreia do Sul, teve 100% das suas salas tomadas com a estreia de “Jurassic Park”, em 1993. Durante quatro meses daquele ano, apenas esse filme esteve em exibição nos cinemas sul-coreanos. A partir daquele momento, o governo resolveu investir no audiovisual do país. Uma das principais medidas foi a determinação que os cinemas da Coreia exibam filmes sul-coreanos por pelo menos 146 dias ao ano.
A regulamentação de entrada de filmes estrangeiros fez a população consumir mais os seus próprios produtos, ajudando na formação de profissionais da indústria do país. O resultado foi “Parasita” ganhar o Oscar de Melhor Filme em 2020 – o primeiro de língua não inglesa a vencer na categoria – e o fenômeno “Round 6”, a série mais vista da história da Netflix. Maior polo de produção audiovisual do mundo, os Estados Unidos também possuem suas próprias determinações. O país proíbe que um único filme ocupe mais de 10% do seu parque exibidor, hoje formado por mais de 45 mil salas de cinema. Segundo a Ancine (Agência Nacional do Cinema), o Brasil tinha apenas 3.401 salas em 2022.
Marina refuta a noção que a indústria do audiovisual funcione como “oferta e demanda”. “A cota de tela não restringe lançamentos internacionais e tampouco limita salas de cinema somente para obras nacionais, mas cria um equilíbrio de mercado e da própria oferta. Ou seja, ao chegar em um cinema, você pode ter a oportunidade de ver um filme brasileiro e o hollywoodiano em cartaz coexistindo”, afirmou.
O diretor Hsu Chien, que dirigiu “Desapega”, o segundo filme nacional mais assistido do ano, diz que o cinema brasileiro enfrenta uma crise derivada da pandemia da Covid-19. “A pandemia acostumou o público a ficar em casa assistindo conteúdo de streaming. E mesmo com o fim da pandemia, esse hábito se manteve. Então o que acontece é que boa parte do público vai para a sala de cinema assistir o que a gente chama de filme evento. As pessoas não estão deixando de assistir aos filmes brasileiros no cinema pela qualidade dos filmes. Muito pelo contrário, os filmes são de excelente qualidade técnica e variação de gênero. Mas os exibidores alegam que o público não está indo assistir esses filmes e botam nos horários horríveis, de uma da tarde, três da tarde, que ninguém vai”, afirma Hsu.
“Nosso Sonho”, o último grande lançamento nacional, estreou na última quinta-feita também sob responsabilidade de Felipe Lopes. O filme, que conta a história da dupla de funk Claudinho e Buchecha, estreou em 470 salas e teve quase 50.000 espectadores na primeira semana. Lopes afirma que os números modestos de bilheteria jogam luz a um problema ainda maior que a cota de tela. “A cota de tela é um mecanismo que vem junto com formação de público e que vem junto com investimento em distribuição e comercialização. A gente fez uma campanha grande para “Nosso Sonho” e estamos apostando muito no filme, com possibilidade de crescimento através de um boca-a-boca pelos comentários positivos nas redes sociais, mas não existe um edital específico de distribuição e o tempo da política pública é muito lento”, afirma. Felipe ainda completa que a data de lançamento do filme foi pautada a partir do calendário de outras estreias e que teve um investimento de R$ 2 milhões. “A campanha foi feita com 100% de investimento privado da distribuidora, mas se houvesse possibilidade de incentivo eu poderia captar mais para poder fazer uma campanha ainda maior”, conclui.
Reportagem: Bernardo Erthal e Eduardo Gama
Supervisão: Lorenna Medeiros e Pedro Zandonadi