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Futebol e violência de gênero: quando o debate precisa romper o silêncio dos campos

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Na última semana, o mundo do futebol foi tomado por um debate que vai além dos campos: a violência de gênero cometida por jogadores. A discussão veio à tona por conta da contratação de Cuca como técnico do Corinthians. Em 1987, Cuca, na época jogador do Grêmio, foi preso com outros três atletas acusados de cometerem estupro contra uma menina de 13 anos. Dois anos depois, em 1987, a justiça Suíça julgou o caso e condenou os atletas a 15 meses de prisão por atentado ao pudor com uso de violência. A pena prescreveu em 2004; e Cuca e nenhum dos jogadores cumpriu a condenação.

Além de Cuca, diversos outros atletas brasileiros compõem uma lista que não para de crescer: a de jogadores acusados de violência contra mulher. Em janeiro deste ano, o lateral da seleção brasileira, Daniel Alves, foi preso sob a acusação de estupro contra uma jovem de 23 anos. Assim como Bruno, Robinho, Cuca, e inúmeros outros, o caso Daniel Alves escancara como a sociedade brasileira lida com a violência de gênero, afinal, no Brasil em que uma mulher é assassinada a cada 6 horas é possível separar o atleta da pessoa? 

De acordo com a doutora em sociologia, Camila Muhl,  o futebol é visto como um componente da identidade nacional, e por isso,  conversa diretamente com os padrões de gênero construídos em sociedade: “A masculinidade é ensinada desde cedo em uma série de processos que incluem família, escola, religião e também as práticas esportivas. Os meninos são encaminhados para esportes onde aprendem a competir entre si e provar o seu valor, enquanto as meninas são encaminhadas para outras atividades normalmente mais colaborativas, como o ballet”.

Ela acrescenta que a masculinidade é moldada em espaços masculinos como no futebol, nos quais, uma das principais atributos exigidos é o “não ser uma mulherzinha”, ou seja, não apresentar comportamentos associados ao estereótipo do gênero feminino: ‘’fragilidade, afetividade, apego, obediência, desse modo, os meninos internalizam uma compreensão de tudo que se relaciona com o feminino possui valor negativo’’.

De acordo com a pesquisa “Violência Contra Mulheres e o Futebol”, idealizada pelo Instituto Avon, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os boletins de ocorrências de ameaça contra meninas e mulheres aumentam cerca de 24% em dias de jogos em cinco capitais brasileiras. São elas: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Para chegar à conclusão, a pesquisa analisou os dados de violência de 2013 a 2015 que continham informações sobre os dias de jogos do Campeonato Brasileiro da série A.

Para a jornalista esportiva do Sportv, Beatriz Pessoa, a questão da violência contra mulher nos ambientes de futebol vai muito além do que acontece nos campos: “As pessoas, principalmente no Brasil, estão com uma ótica completamente equivocada, né? Essa é a palavra que eu posso usar. Então, como esperar que esses ídolos tenham um comportamento diferente da base da sociedade? A maioria dos homens se comporta dessa forma, como que a gente vai fazer esses jogadores se comportarem de uma forma diferente?”.

Beatriz também explica que o meio futebolístico ainda não é um ambiente totalmente seguro para as mulheres jornalistas: “Não é um ambiente acolhedor, não é tranquilo. Primeiro, pelas pessoas que estão trabalhando ali com você, que são todos ou praticamente todos homens. Segundo, que pelos torcedores, que são majoritariamente homens. Então, o ambiente todo, tanto pra trabalho, quanto as pessoas que estão pra assistir o jogo, quanto quem está ali jogando,não é um ambiente acolhedor para as mulheres”.

De acordo com a doutora em sociologia, Camila Muhl, a chamada masculinidade hegemônica representa as características mais valorizadas para os homens em uma sociedade: “O futebol, em especial aquele desempenhado de forma profissional, une dois elementos que são centrais para a construção do masculino: a potência física e o ato de prover. O jogador passa a ter atestado socialmente a sua virilidade e habilidade a partir da sua prática corporal e condição financeira. Isso traz um status diferenciado para o jogador de futebol em relação aos outros homens”.

Até que não se conte mais: 

Foi em 2019, na cidade do Ceará, que um grupo de mulheres decidiu que os estádios de futebol também se tornariam lugares para elas. Por meio de um grupo de WhattsApp que, inicialmente contava com menos de 30 integrantes, torcedoras do Ceará Futebol Clube começaram a articular um movimento de luta pelos direitos das mulheres dentro e fora de campo. O estopim para a concretização do coletivo, entretanto, ocorreu por conta de um episódio de desdém à vida das mulheres. O anúncio da contratação de um jogador acusado de violência doméstica.

Em dezembro de 2019, Jean Fernandes foi detido nos Estados Unidos,  acusado de agredir a esposa, Milena Bemfica, com oito socos. O jogador, que estava de férias, teve o contrato rescindido no mesmo mês pelo São Paulo, clube pelo qual atuava. Em janeiro, menos de um mês após a dispensa do jogador, o Ceará demonstrou interesse em contratar o goleiro. Para Janaína Queiroz, torcedora do clube, a movimentação em prol da contratação de Jean foi o estopim para uma onda de protestos que surgiu contra a decisão do time:

“O Ceará é um clube que, historicamente, tem uma mancha, porque alguns jogadores que passaram pelo clube têm histórico de agressão contra a mulher. Foi o caso do Wesley, que era um meia-campista que agrediu a namorada. O Wesley foi primeiro, depois teve o Juninho, que também tinha o mesmo histórico. E aí  veio a questão do goleiro Jean vindo para o Ceará. E eu disse, não, agora é diferente. Antes, eu ficava aqui falando sozinha, mas agora não. Agora eu tenho um grupo”.

O grupo mencionado por Janaína, na época, contava com cerca de 40 mulheres torcedoras do Ceará. Em conjunto com páginas de torcida, as torcedoras lançaram no twitter as hashtags #JeanNao e #JeanNoCearaNão. A repercussão foi tão grande que os termos foram parar nos assuntos mais comentados da rede social. Como resultado, diante da alta repercussão dos protestos, a diretoria do clube voltou atrás, e decidiu não contratar Jean.

Desse protesto nasceu a “Torcedoras Raiz”, a primeira torcida organizada feminina do Nordeste. Além de estímulo à presença das mulheres nas arquibancadas dos jogos, a torcida também assume como parte fundamental do trabalho o engajamento com pautas de responsabilidade social: “É muito importante que a torcida entenda a responsabilidade que ela tem. Porque é muito fácil a gente dizer que lugar de mulher é onde ela quiser. Mas ela tem que se sentir segura para isso” afirma a torcedora. 

Apesar dos esforços, o caminho de combate à violência de gênero ainda é longo. Para Janaína é preocupante que a sociedade brasileira não se posicione em casos como os dos jogadores Daniel Alves, Robinho e Bruno: “A gente escuta muito: Ah, mas ele já cumpriu a pena. Ele tem que trabalhar. Concordo. Eu acredito que deve haver ressocialização. Mas será que no esporte? Será que no local de destaque, como um ídolo servindo de exemplo para criança e adolescente? Será que isso dá certo?”, questiona a torcedora.

Reportagem: Isabela Garz

Supervisão: Clara Glitz

Imagem de capa: Reprodução/CNN – Na foto, Cuca é abraçado por jogadores após vitória do Corinthians em jogo classificatório.

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