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Mar, identidade e território: os vizinhos da Baía de Guanabara

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Reportagem de Cecilia Santos, Isabelle Rodrigues e Laura Motta

Do tupi guarani, guaná pará pode ser traduzido como “o seio de onde brota o mar”. A língua deu nome à Baía de Guanabara, que banha e faz história no estado do Rio de Janeiro. As águas que acompanharam a ocupação de povos indígenas tupinambás e tamoios, viram a chegada dos portugueses em terras brasileiras e ajudaram a construir a identidade carioca, hoje são o retrato das consequências que a construção de um modelo de metrópole globalizada podem trazer para a natureza que a rodeia. O descaso e a intervenção humana mancharam um dos maiores cartões postais do Rio.

A Baía de Guanabara é uma das maiores do litoral brasileiro, tendo uma área de aproximadamente 400 km² e cerca de 3 bilhões de m³ de água. Ao longo de sua extensão, nas 47 praias que percorrem o Rio de Janeiro, Ilha do Governador, Ilha de Paquetá, Niterói, São Gonçalo e Magé, suas águas recebem cerca de 15 mil litros de esgoto não tratado por segundo, e o principal motivo disso é a ocupação desordenada, segundo dados do livro “Baía da Guanabara: biografia de uma paisagem”, escrito por Eliane Canedo, referência em estudos e projetos relacionados ao tema.

Entretanto, o mar não é o mesmo para todos. A falta de apoio do governo quanto ao saneamento básico e tratamento do lixo da Baía é um dos fatores responsáveis pelo cenário atual, já que existe uma disparidade no saneamento entre os municípios do entorno. Para quem reside no entorno e o tem como fonte de alimento e sustento, o impacto é mais que simbólico. Segundo o geógrafo e pesquisador Pedro D’Andrea, que é mestre em geografia humana e estuda a relação entre populações e territórios, o nível de interação que um indivíduo tem com a Baía define o impacto da poluição em sua vida. “Se você é pescador, pescadora ou marisqueira, você tem que ir cada vez mais longe pra pescar o teu peixe. Se a Baía de Guanabara é central no teu modo de vida, o impacto é central a ponto de poder ser desestruturante”, afirma. Além disso, ele aponta a urbanização desenfreada e a presença de empresas nas adjacências como um dos fatores para o processo de contaminação das águas. “Esse modelo de cidade e de desenvolvimento faz com que o mar seja visto como um grande lixo, um grande depósito”, complementa D’Andrea.

A relação direta com a Baía de Guanabara faz parte da vida dos moradores de seu entorno, como é o caso de Aloysio Santos. O desembargador aposentado de 77 anos, que reside em Icaraí, Niterói, desde a juventude, teve um dos pontos turísticos mais conhecidos do Rio de Janeiro como coadjuvante de sua trajetória. Santos, que caminha pelo calçadão da praia de Icaraí 5 vezes por semana, tem o hábito de prestar atenção na sujeira da praia: “tem dia que dá nojo de caminhar”, comenta.

O início da relação com a Baía se deu na juventude, quando Santos iniciou a carreira de atleta, no time juvenil do Flamengo, em 1958. Embora a sede do clube fosse na Gávea, ele ia de barca, em um percurso que durava – no mínimo – 40 minutos entre a Praça Araribóia e Praça XV. O contato se estreitou quando começou a remar no Gragoatá, em Niterói, após deixar o clube. Ele conta que, pelo horário que tinha disponível para treinar – em geral, antes das 4 horas da manhã – costumava fazê-lo individualmente, e aproveitava o momento para apreciar a calmaria das águas, que apenas se moviam quando havia alguma barca em movimento.

As águas da Baía de Guanabara, segundo ele, são poluídas desde que se recorda. No entanto, em uma proporção muito menor do que hoje em dia. Santos recorda que as idas e vindas pelo trajeto Praça Araribóia x Praça XV eram acompanhadas diariamente por visitantes que hoje são ilustres. “Os golfinhos, uns 3 ou 4 em geral, eram atraídos e acompanhavam o percurso das embarcações”, diz. As barcas são, inclusive, um dos transportes de massa mais antigos do país, existente desde 1835. Há 8 estações (Praça XV, Praça Araribóia, Charitas, Cocotá, Paquetá Ilha Grande, Mangaratiba e Angra dos Reis) e o trajeto de 5 delas cruzam a Baía. O serviço, prestado pela CCR Barcas desde 2012, transporta 22000 pessoas em média até as 10h pelas águas da baía oceânica.

Aloysio Santos conta que acompanhou de perto o processo de poluição da região justamente por usar o meio de transporte, de segunda a sexta, por mais de 40 anos. “A sujeira naquela época era mais por negligência das pessoas, e agora é mais das autoridades”, explica. Além disso, também frequentava a Praia de Icaraí, uma das mais conhecidas de Niterói. “As pessoas estão mais cuidadosas hoje”, diz ao se recordar do período de sua vida em que ia para Icaraí nos fins de semana e via os frequentadores deixando no local todo o lixo produzido durante o dia.

Já no outro lado da Baía, na Zona Sul do Rio de Janeiro, entre Botafogo e Leme, está a Urca, outro bairro banhado pela baía. O bairro possui ruas extremamente arborizadas, praças, uma mureta com vista deslumbrante e reflete o

estilo de vida de seus moradores: tranquilo, calmo e silencioso, diferente de grande parte da cidade do Rio de Janeiro. Suas praias são extremamente importantes para compor a vida dos moradores e turistas do local: a Praia Vermelha, Praia da Urca e a Praia de Fora, exclusiva do Exército Brasileiro, todas banhadas pela Baía de Guanabara.

As atividades de lazer realizadas pelos moradores que ali nasceram e cresceram envolvem, em sua maioria, as praias, mesmo que algumas tenham passado a serem consideradas impróprias para banho. Para Márcia Fernandez, de 46 anos, isso não foi diferente. Segundo ela, o grande encanto do bairro é o fato de estar localizado na Baía. “Não tem como falar da Urca e não estar diretamente relacionada a Baía de Guanabara. A Baía é essa beleza, nos dá a Praia da Urca, Praia Vermelha e a Fortaleza de São João”, explica. A moradora conta, com grande apreço, sobre sua vida quando criança no bairro, quando pescava sem se preocupar com a poluição das águas e todos os problemas que são consequências dos maus costumes da população. “Quando eu era pequena a gente pescava, era limpa a Baía, né? Com a questão do esgoto a situação ficou bem complicada. Não só a saída do esgoto, mas de todos os detritos jogados no mar pela falta de consciência das pessoas”, afirma a carioca. Como consequência dos hábitos desprovidos de responsabilidade socioambiental cultivados ao longo dos anos, os moradores precisaram mudar alguns de seus hábitos. Pessoas que antes podiam aproveitar seu bairro para lazer desfrutando de suas praias, atualmente, vêem as águas turvas, lixo em suspensão e sentem o odor desagradável vindo da água, o que afasta banhistas. Segundo o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), a Praia da Urca apresentou uma melhora significativa na qualidade da água em 2018, sendo considerada própria para banho em 90% dos informes. Esse resultado seria classificado como praticamente impossível em 2015, ano em que a praia foi considerada em boas condições em apenas 15% dos informes.

A esperança pela despoluição das águas e o amor pelo bairro e seus encantos naturais, existentes graças à Baía de Guanabara, são o que movem Márcia. “Ir na Praia da Urca, Baía de Guanabara, mergulhar das pedras, caminhar na praia, é literalmente aproveitar o nosso quintal. Tendo morado fora e voltado, parece que na minha volta eu voltei para onde eu pertenço”, explica ela, que residiu fora do Brasil durante 15 anos e voltou a morar efetivamente na Urca em 2015.

Na Baía, existe ainda uma ilha que tem um jeito próprio de viver, mas que também é afetada pela poluição. Sob a alcunha de Pérola da Guanabara, a Ilha de Paquetá é um bairro com cara de outra época e com uma história banhada pelas águas fluminenses. A uma barca de distância do centro do Rio de Janeiro, Paquetá está a aproximadamente 15 quilômetros da Praça XV e faz parte do território carioca.

Quem mora em Paquetá geralmente tem uma das 12 praias em sua esquina. Essa é a realidade de Vitória Franco, de 20 anos, que tem a ilha como casa desde os seus 15 dias de vida. A água transparente que a permitia ver peixes e cavalos marinhos quando criança deu lugar a uma cor esverdeada e escura, acompanhando as mudanças que a Baía de Guanabara sofreu depois de tantas intervenções. “A gente é muito ligado à Baía, a gente vive nela, estamos o tempo todo aqui, é a paisagem de todo dia. Eu sinto que a gente perde tanto da forma monetária quanto da forma sentimental”, conta a jovem, que vê perdas a partir do processo de poluição para além dos impactos apenas no turismo cultural e ambiental do bairro.

Uma das principais características de Paquetá é o fato de não ser permitido o tráfego de veículos motorizados particulares, onde o transporte é feito apenas através de charretes, bicicletas e trenzinhos. Entretanto, o estilo de vida sustentável em nada combina com a poluição que tomou o mar da ilha. Hoje, muitas praias são impróprias para banho e não permitem mais o lazer de quem visita Paquetá em busca de paisagens naturais. “Como aqui é uma ilha e é um ponto turístico, a gente acaba perdendo visitantes por conta da fama que a Baía tem de suja. Isso afeta demais e deixa de alimentar uma renda que a gente tem”, explica a jovem. Além disso, os impactos socioambientais da poluição têm afetado também a identidade local, como aponta a moradora. “É muito triste viver numa ilha e ver ela se destruindo com o tempo. Se a Baía fosse mais limpa, a gente viveria mais pra Paquetá. A gente está começando a só estar aqui e não viver mais aqui”, desabafa.

A sensação dos moradores é de que a paisagem nunca mais será igual, mesmo com o discurso frequente de iniciativas de processos de despoluição. Segundo Vitória, pra quem mora na ilha, é irreal imaginá-la limpa novamente. “Eu tenho certeza que é uma utopia pensar que ela vai ser como era quando eu tinha cinco anos de idade. Se tudo voltasse, o turismo ia aumentar e todos os moradores daqui seriam mais felizes”, afirma a jovem. Ter a identidade da Baía de Guanabara resgatada é o sonho de cada indivíduo que tem a ilha como lar, afinal, pra eles,

Paquetá tinha tudo pra ser um Fernando de Noronha carioca, se não fosse vencida diariamente pela poluição.

Por trás de todas as impurezas, essas águas carregam memórias de gerações em gerações, como é a relação de um povo com o território em que vive. “Existe o acúmulo do saber e do fazer, da ancestralidade, da oralidade. Você constitui território na medida que o território te constitui. A dimensão do cenário de poluição atravessa a Baía de Guanabara também enquanto lugar de formação de diferentes territorialidades”, explica D’Andrea. Com a identidade da Baía de Guanabara em xeque, a cada dia a história do Rio de Janeiro perde.