O aumento da violência doméstica durante a quarentena
Compartilhar
A pandemia do coronavírus causou a reclusão de cerca de um terço da população mundial em suas casas. Isso levou ao confinamento de famílias por tempo indeterminado, e como consequência, o aumento de casos de agressão doméstica. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Antonio Gutierrez, fez uma declaração no início de abril afirmando que nas últimas semanas, à medida que as pressões econômicas e sociais e o medo aumentaram, vimos uma onda global horrível de violência doméstica.
O estado do Rio de Janeiro está em quarentena desde o dia 23 de março, com exceção dos estabelecimentos de maior necessidade, como supermercados e farmácias. Consequentemente, o Plantão Judiciário do Rio divulgou que o número de denúncias aumentou em 50% nesse período, e a socióloga Bruna Pereira, formada pela Universidade de Brasília (UnB), esclarece algumas razões para os dados: “as pessoas estão confinadas em um mesmo espaço, o que já tende a causar problemas de convivência. Temos uma situação de incertezas, preocupação com dinheiro e acesso a serviços de saúde, o que não justifica o aumento da violência”.
Os tipos de violência determinados na Lei Maria da Penha são física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. A primeira configura-se como qualquer agressão corporal, desde um empurrão até espancamento. Já a psicológica pode trazer danos ao emocional da vítima, o que afeta sua capacidade de tomar decisões e o bem-estar dela. Fernanda (nome fictício para a vítima entrevistada) conta ao portal: “Foram longos anos de agressões físicas e psicológicas. Por 10 anos vivemos juntos, e sempre com as mesmas promessas de mudança. Minha dependência era absoluta, financeira e emocional. Eu não tinha mais identidade, estava exausta e me culpava porque qualquer fosse a minha escolha, afetaria a vida da minha filha.”
A violência moral é quando o agressor afeta a reputação e diminui o valor da mulher. Há também a violência sexual, quando a vítima é obrigada a manter qualquer tipo de prática sexual sem o seu consentimento. “Muitas mulheres acham que quando estão em um relacionamento, elas têm a obrigação de manter relações sexuais com seu parceiro, o que não é verdade” afirma a socióloga. No que diz respeito à violência patrimonial, o agressor destrói ou retém alguma coisa que é da mulher, por exemplo, se ele não deixar ela ter acesso aos documentos ou ao próprio celular.
Com o isolamento, torna-se difícil sair de casa para fazer a denúncia, e mulheres em situação de vulnerabilidade social enfrentam mais dificuldades por conta da limitação de recursos para procurar ajuda. “Se ela tiver mais dinheiro pode sair de casa ou pedir ajuda a alguma amiga, contratar bons advogados e investir mais em segurança. Já quem possui menor poder aquisitivo depende da proteção do Estado, que nem sempre é acessível.” explica Bruna.
Um dos fatores que impede a denúncia é a falta de apoio que a vítima recebe: “Nos primeiros anos, pedia conselhos para alguns familiares e amigos. Depois de um tempo, estava tão envergonhada de viver aquilo de forma recorrente que não sentia mais vontade de falar. Quando me separei, inclusive, muitos me falaram que eu estava louca porque ele era um bom homem e tínhamos uma ótima vida. Apenas algumas amigas mais íntimas me apoiaram” diz Fernanda. Por isso, é importante que pessoas de fora estejam dispostas a ajudar, seja chamando a polícia ou oferecendo abrigo.
Outro cenário recorrente é a culpabilização da vítima quando ela decide fazer a denúncia, como Fernanda expõe. “Passei por algumas delegacias, mas nunca levei adiante. Uma vez, inclusive, uma inspetora me desencorajou de uma forma tão absurda que parecia que eu era a errada. Ele (agressor) usava seu poder social e econômico para me invalidar”. A conscientização da vítima em perceber que está em uma relação abusiva é um processo lento e doloroso, porém necessário. Durante a quarentena, superar essa situação é ainda pior “Acho muito preocupante o fato de alguma dessas mulheres precisarem de atendimento médico e não poderem ir por causa da pandemia”, finaliza Fernanda. Em uma sociedade estruturalmente patriarcal, é necessário ensinar a importância do combate ao machismo e suas consequências “É preciso uma percepção diferente por parte das mulheres e uma educação para os meninos e homens, para que eles reconheçam as mulheres como iguais e não como objeto de agressão”, ressalta a socióloga. “As próprias autoridades tendem a descredibilizar o que a vítima diz”, informa a socióloga.
No dia 29 de março, o presidente Jair Bolsonaro fez uma entrevista coletiva em Brasília e comentou: “Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?”. Porém, a quarentena não serve como justificativa para as agressões, como explica Bruna Pereira “Essa afirmação é bastante complicada porque coloca a violência contra a mulher como algo normal e aceitável, que cada vez que os homens precisam lidar com problemas isso dá aval para violentar suas parceiras. É fato que todo mundo está mais estressado, e o modo como expressamos isso está relacionado a como fomos educados e como a nossa sociedade enxerga homens e mulheres.”
A vítima aconselha todas as mulheres, em especial as que estão passando por uma experiência semelhante à que Fernanda vivenciou: “Amem-se! Valorizem-se! Por falta de autoestima nos colocamos em relacionamentos abusivos fadados ao fracasso. E para as que estão em isolamento social, denunciem só quando estiverem em segurança, busquem abrigo em outro lugar, ajam antes que seja tarde. Não esperem as agressões progredirem para terminar o relacionamento. Sejam fortes, lutem por sua própria felicidade, por mais doloroso que seja o processo”.
Muitas organizações continuam funcionando mesmo com a pandemia, uma delas é a Associação Fala Mulher. A porta-voz da instituição Vanessa Molina conta que artesãs estão doando máscaras para os funcionários e às vítimas atendidas, como forma de evitar o contágio do coronavírus. Ela também informou que a equipe está realizando um monitoramento remoto das pessoas que já estavam em acompanhamento, e novas ocorrências estão sendo efetuadas por telefone. “Para os casos mais graves, nossos abrigos estão recebendo as mulheres e seus filhos, os quais ficam em isolamento nos primeiros 15 dias de acolhimento” complementa.
É importante a divulgação de todas os meios que auxiliam quem está passando por esse cenário de violência. A central de atendimento à mulher (ligue 180) funciona 24 horas por dia, inclusive aos domingos e feriados. Além disso, é possível discar 190 para denunciar casos que estejam acontecendo na hora, tendo sofrido o crime ou testemunhado. Há também como ligar para uma das unidades da Delegacia da Mulher, que recebe qualquer denúncia configurada na lei Maria da Penha.
Nas redes sociais está havendo uma mobilização em prol do combate à violência doméstica, através de perfis engajados na luta feminina, como o @eunaodeixopassar. Vale acrescentar que foram criados aplicativos que auxiliam na segurança, como o PenhaS e o Apoio Vítima.
Reportagem: Eloah Almeida e Gabriela Leonardi
Supervisão: Maria Luísa Martins e Patrick Garrido