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Legítima defesa da honra em oposição à vida

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Ano após ano, o Brasil registra números cada vez maiores de feminicídio e de agressão à mulher. Com a chegada da pandemia, esses números não diminuíram. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 143 mulheres foram assassinadas no Brasil, durante os meses de março e abril de 2020. Isso representa um aumento de 22,2% comparado com o mesmo período de 2019. Tal fato corrobora para que o Brasil se estabeleça como o quinto país com maior número de feminicídios no mundo. Esse aumento reflete um problema antigo, presente em toda a história do país: o machismo e a violência de gênero.

Uma das justificativas mais utilizadas para fundamentar esse tipo de crime é o argumento de legítima defesa da honra. A ideia, ainda aplicada em tribunais de júri popular, busca absolver os acusados por crime de feminicídio através da transferência de culpa para a vítima. A tese utilizada pela defesa aponta o comportamento feminino como o motivo do homicídio.

Questionada sobre a banalização da agressão contra a mulher, a advogada e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/DF, Ana Lima, afirma que o nosso sistema social é responsável pela manutenção do poder da figura do homem. “A problematização consiste em permitir que agressores se escondam atrás da sua masculinidade, para continuar decidindo sobre a vida ou morte de uma mulher, já tão fragilizada socialmente. Motivaria alguns, inclusive, a acreditar em impunidade”, afirma a advogada.

A transferência de culpa para a vítima, entretanto, não representa um fato isolado ou novo no país. Em 1976, a socialite Ângela Diniz foi morta a tiros por seu marido, Raúl “Doca Street”. Na época do julgamento, o caso recebeu grande cobertura da mídia, muito em função da utilização do argumento de legítima defesa da honra. A defesa de Doca buscou responsabilizar a vítima pelo crime, questionando seu comportamento, sua moralidade sexual e a dependência que possuía com as drogas. Por fim, o advogado terminou a argumentação afirmando que Doca matou por amor. Em contrapartida à frase do acusado, movimentos feministas iniciaram uma onda de protestos com o slogan “quem ama não mata”.

Atualmente, o apelo da tese da legítima defesa da honra, antes aceito pelos tribunais, é considerado ultrapassado e odioso. Em recente ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental), o ministro Dias Toffoli decidiu liminarmente pela inconstitucionalidade da tese, por contrariar os princípios, presentes na Constituição Federal (CF), da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigo 5º, caput) da CF. De acordo com o ministro Gilmar Mendes, a tese é inadmissível, “visto que pautada por ranços machistas e patriarcais”, fomentando um ciclo de violência de gênero na sociedade.

De tal forma, o argumento não possui base jurídica e em nada se parece com o Princípio da Legítima Defesa. Sobre o assunto, a juíza da Vara de Violência Doméstica de Pelotas, Michele Soares explica que o artigo 25 do Código Penal estabelece que a legítima defesa pode ser utilizada como forma de “repelir uma agressão atual e iminente, com o uso necessário dos meios moderados”. Assim, na situação de um homicídio, é evidente, que a violência utilizada em nada se assemelha aos chamados “meios moderados”, previsto no artigo.

Segundo a magistrada, a honra pode ser violada e existem algumas formas de garantir sua defesa. Como exemplo, destaca a existência específica de crimes contra honra e as possíveis indenizações financeiras utilizadas para proteção desse bem jurídico. A juíza ainda ressalta que “mesmo que a pessoa esteja exercendo a legítima defesa da sua honra, nunca vai poder responder na forma de um feminicídio, tentando e até mesmo matando uma mulher.”

Sobre o assunto, a psicóloga Danilla Camara Ferreira diz que “há a intenção de retirar a responsabilidade e a culpa do agressor pelo sofrimento causado à mulher, como se a violência tivesse um aval para acontecer quando afetasse a honra masculina”. Ainda fala que, mesmo se nos dias atuais, a traição fosse considerada crime, como era no passado, nada justificaria uma reação violenta, sendo obviamente a vida da mulher não menos importante que a honra do homem. “Ora, afinal, se é para falar de honra, onde está a honra da mulher quando lhe é tirado o direito à vida?”, finaliza a especialista.

Esta semana, o Supremo Tribunal Federal deve julgar definitivamente se o argumento da legítima defesa da honra pode ser, ou não, aceito como tese para absolvição de réus acusados de feminicídio. Na semana do dia da mulher, fica a esperança que esse comportamento patriarcal e machista, que anteriormente possibilitava aos agressores saírem ilesos de seus crimes, seja excluído de vez da sociedade brasileira.

Equipe: Beatriz Chagas, Brenda Barros, Fernanda Bichara, Guilherme Rezende, Gustavo Vieira, Isabela Garz, João Manoel Morais, João Pedro Camero, João Pedro Fonseca, Mateus Rizzo e Paola Burlamaqui 

Supervisão: Bruna Barros e Pedro Cardoso

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