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O incêndio da Boate Kiss e a resistência para evitar o seu esquecimento

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O incêndio da boate Kiss, ocorrido no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, causou a morte de 242 pessoas e deixou 636 feridos. A tragédia marcou a história do Brasil, sendo considerada o segundo maior incêndio do país. Após 5 anos do acontecimento, foi lançado o livro-reportagem Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss, da jornalista Daniela Arbex. Até hoje, os culpados seguem impunes e o processo não foi solucionado na Justiça. Neste mês de setembro, a equipe do Portal leu a obra e conversou com alguns envolvidos na história, como a autora do livro e dois sobreviventes da tragédia, Gustavo Cadore e Maike Adriel dos Santos. 

A autora relata que um radialista da Tribuna de Minas, onde ela trabalhou por 23 anos, contou que havia conhecido uma enfermeira de Santa Maria pelo Facebook e que ela precisava retratar uma outra versão do acontecimento. “Naquela hora até brinquei com ele dizendo que Santa Maria é do outro lado do mundo, e sou do interior de Minas Gerais, e que todos já tinham contado essa história. Aí ele reiterou, ‘você não está entendendo, você tem que contar essa história’. Aquilo mexeu comigo”, comenta a escritora.

Daniela relata que o processo de escrita foi difícil por diversos fatores. Para a apuração, ela precisou viajar para o Rio Grande do Sul, bem longe de seu estado de origem, Minas Gerais. “Inicialmente, havia uma desconfiança das famílias, porque elas haviam sido muito expostas na mídia, sentiam-se exploradas na sua dor, e eu era uma jornalista estrangeira no Rio Grande do Sul”, pontua. Além disso, apesar de já ter publicado três livros na época, a incerteza por parte dos pais das vítimas fez Arbex sentir como se estivesse começando na carreira. 

A autora também cita a dificuldade emocional que enfrentou ao escrever a obra e como isso a afetou, porque se sentiu apegada às famílias, e, quando percebeu, estava em luto por todos os jovens que morreram na boate e não conseguia sair. “Eu engordei dez quilos, perdi a metade do meu cabelo e precisei fazer terapia logo que terminei esse livro. Não foi um trabalho fácil, mas eu faria tudo de novo”. Ela finaliza contando que para entender uma história leva tempo, demandando vontade de escutar. “É uma entrega; entrega do seu tempo, do seu interesse da sua emoção”

 O significado por trás do subtítulo do livro, segundo Daniela, se deve ao fato de que ainda existem lados da narrativa que não foram apurados, apesar de ser uma tragédia tão conhecida. “Quando colocamos o subtítulo no livro Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss tem muito a ver com o fato de eu nunca ter imaginado que em um dos eventos mais coberto pela imprensa no mundo eu fosse encontrar alguma coisa que não tinha sido dita”. Além disso, ela acredita que não existem histórias já contadas, pois sempre se pode contar de uma forma diferente.

Maike Adriel dos Santos foi à Kiss em um grupo com outros sete amigos e foi o único a sair com vida da boate, apesar de ter ficado uma semana em coma e o mês de fevereiro de 2013 inteiro internado. Ele diz que foi complicado descrever a história daquela noite nas entrevistas com Daniela, pois, mesmo já acostumado a participar de matérias, isso o fazia reviver o acontecimento. “Com essa experiência de dar o meu depoimento para a ‘Dani’ e ela fazer essa narrativa bonita, ajudou, principalmente, a informar melhor as pessoas”, disse. Ele entende que é importante contar suas memórias para que a história não caia no esquecimento. 

O jovem também conta que, após o apoio inicial diante da tragédia, muitos habitantes da cidade ficaram incomodados com a manifestação das pessoas que buscavam justiça e relembrar as vidas perdidas. “A população de Santa Maria dizia que tínhamos que nos calar. É incabível. Não tem como eu esquecer de mais de trinta amigos que morreram; não tem como seiscentas e poucas famílias esquecerem suas vítimas, e pais e mães esquecerem seu filho único.”

Maike descreve que, um tempo depois, algumas pessoas começaram a culpar as vítimas pelo acidente. “Posteriormente até, se eu não me engano, uma juíza deu a desculpa de colocar a culpa nas vítimas, porque elas tinham ingerido bebida alcoólica”, comenta. Ele afirma que os pais também foram culpados; muitos cidadãos diziam que se estivessem dentro de casa ou dentro da igreja, eles não teriam perdido suas crianças. “Depois da surpresa, tudo isso virou algo muito revoltante de escutar”, completa. 

Gustavo Cadore também é um dos sobreviventes da tragédia. Ele teve 40% do corpo queimado e passou um mês em coma depois do incêndio. O jovem protagoniza um emocionante capítulo no livro em que são retratados seus primeiros dias após o incidente e como foi a sua recuperação. Ele relata que até hoje sofre reflexos do que aconteceu naquela noite de janeiro de 2013, sendo uma delas ter repensado ir a lugares com aglomeração e como se sente em ambientes assim. “Atualmente não tenho tanto essa preocupação, mas toda vez que frequento algum lugar diferente, procuro observar os locais de saída em caso de alguma emergência que possa ocorrer”. 

O processo de produção de Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss foi difícil tanto para Daniela Arbex, que o escreveu, quanto para Maike e Gustavo, que relataram profundamente o que aconteceu. Porém, as reações dos dois sobreviventes em relação ao lançamento da obra foram diferentes. Ao passo que o primeiro leu todo o livro e vê a importância deste para que a história seja sempre lembrada, Cadore nunca conseguiu terminar a leitura. “Foi uma boa experiência poder contar um pouco sobre como foi estar dentro da boate naquele dia. É algo que ainda me causa uma certa angústia, mas ao menos no livro ficará uma história relatada que se torna um pouco mais difícil de ser esquecida”.  

Para Maike, que perdeu mais de trinta amigos na boate; para Gustavo que tem marcas tanto físicas quanto emocionais do incêndio; para Daniela, que deixou um pedaço de si nos relatos mais emotivos daqueles pais; para centenas de famílias que tiveram suas existências mudadas, essa tragédia é um dos capítulos mais difíceis de suas vidas e não merece ser esquecida ou negligenciada. 

“Para quem perdeu um pedaço de si na Kiss, todo dia é 27.”- Daniela Arbex no livro Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss

 

Sobre a autora

A jornalista e autora brasileira, Daniela Arbex, dedica boa parte de sua carreira à defesa dos direitos humanos. Nascida em Minas Gerais, trabalhou como repórter no Jornal Tribuna de Minas por 23 anos e  já recebeu mais de 20 prêmios nacionais e internacionais, como o Esso, o Knight International Journalism Award (2010), o IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina (2009) e o Natali Prize, recebido em 2002 na Bélgica. No momento, ela tem focado na literatura. “Todo dia a mesma noite” é o terceiro livro escrito por Daniela, que possui o total de quatro obras publicadas.

Outros livros de Daniela Arbex:

Holocausto Brasileiro (2013)

O best-seller conta com depoimentos de ex-funcionários e pessoas envolvidas sobre os maus-tratos na rotina do Hospital Colônia de Barbacena, administrado pela FHEMIG. O livro foi eleito Melhor Livro-Reportagem do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (2013) e segundo melhor Livro-Reportagem no prêmio Jabuti (2014). Foram vendidos mais de 300 mil exemplares no Brasil e em Portugal, e a obra foi adaptada para a TV, em 2016, no documentário produzido para a HBO.

Cova 312 (2015)

Escrito como um romance, o livro conta como as Forças Armadas torturaram e mataram um jovem militante político, forjaram seu suicídio e sumiram com seu corpo. Daniela continua investigando até a descoberta do corpo, na anônima Cova 312. 

Os Dois Mundos de Isabel 

Daniela remonta a história de Isabel Salomão de Campos, nascida em 1924, que é da primeira geração de brasileiros de uma família de imigrantes libaneses. Durante a infância via e ouvia coisas que ninguém entendia, mas, conforme se tornou adulta, Isabel entendeu a sua vocação, reconhecendo que se comunicava com espíritos. Mais tarde, ela veio a ser a fundadora da Casa do Caminho, um centro espírita que realiza trabalhos importantes voltados para famílias em situação de vulnerabilidade social.

Reportagem: Beatriz Chagas, Deborah Lopes, Juliana Gomes e Marina Leite.

Supervisão: Gabriela Leonardi e Leticia de Lucas

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