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“As veias abertas” da democracia latinoamericana

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Na última terça-feira (30), os três comandantes das Forças Armadas decidiram colocar os cargos à disposição, em resposta à reforma ministerial do presidente Jair Bolsonaro e à demissão do ministro da defesa (29), Fernando Azevedo. Em nota oficial, o ex-ministro afirmou que, durante seu período na pasta, preservou as Forças Armadas como instituições de Estado. A fala explicita que a autonomia do órgão, perante as inclinações políticas deste e de qualquer governo, deve ser mantida, conforme prevê a constituição.

A troca de ministros também expôs o descontentamento do presidente com Azevedo, que era constantemente cobrado a dar manifestações públicas de apoio ideológico ao governo, como feito pelo novo ministro da Defesa. Em seu primeiro ato público, o general Walter Braga Neto publicou uma ordem do dia em que exalta o golpe militar de 1964 e comemora os 57 anos do feito, completados nesta quarta-feira (31). O atual dirigente da pasta se refere ao ‘’movimento de 31 de março’’ como “parte da trajetória histórica do Brasil” e cujos acontecimentos ‘’devem ser compreendidos e celebrados’’. 

Manifestações como essas, feitas em prol de regimes autoritários, representam uma ameaça às instituições democráticas. Ao longo dos anos, com o objetivo de medir a qualidade da democracia global, o Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit (EIU), divisão de pesquisa e análise de dados do jornal The Economist, examina o estado democrático de mais de 150 países. O último relatório, referente ao ano de 2020, mostrou uma média global de 5.37, em uma escala que vai de 0 a 10. Esse é o pior índice desde 2006, quando a indexação foi criada. O resultado reflete casos de retrocesso vistos em diversas regiões do globo, nos últimos anos, dentre elas, a América Latina.

Para o índice da EIU, o Brasil é uma democracia falha. Uma vez que o país possui um processo eleitoral transparente e sólido, mas deixa a desejar em pontos importantes como cultura e pluralidade política. Sobre os empecilhos que dificultam o alcance de uma democracia consolidada, a graduanda em Ciências políticas e colunista no “Diário das Nações”, Mozara Rodrigues, afirma: “A falta de confiança nas instituições, principalmente em relação ao sistema judiciário, é uma barreira para o alcance de uma democracia plena”. 

Além disso, a maioria da população brasileira (83%) se diz insatisfeita com o funcionamento da democracia, segundo pesquisa do Pew Research Center. Conforme explica Rafaela Corrêa, Diretora Executiva do Diretório Central do Estudantes da UFRJ, as velhas práticas liberais, ao priorizar os interesses de empresários e retirar direitos dos trabalhadores, causam um desinteresse profundo na política. A respeito do resultado dessa insatisfação, Mozara Rodrigues declara: “Quando o povo começa a se distanciar e perder parte dessa confiança, cria-se um espaço para reivindicações autoritárias”. 

Exemplo recente, foi o caso do Deputado federal Daniel Lucio da Silveira (PSL-RJ) que publicou em suas redes sociais um vídeo com apologia ao Ato Institucional nº 5 (AI-5) e ataques aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O parlamentar foi preso em flagrante, no dia 16 de Fevereiro, com base na Lei de Segurança Nacional, de 1983. Em resposta, o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados instaurou um processo por quebra de decoro parlamentar, o qual Daniel irá responder e poderá levar à cassação do seu mandato.

Pouco depois, no dia 17 de Março, o governo Bolsonaro conseguiu permissão, concedida pelo  Tribunal Regional Federal da 5ª Região, para celebrar o golpe militar de 1964.Para Mozara, a apologia à ditadura e ao AI-5, ‘’que configurou um dos momentos de maior repressão e violência do país’’, é um ato intolerável que nenhuma democracia deve deixar passar esquecido. Ela acrescenta que um dos pilares da democracia contemporânea é a liberdade de expressão, mas que este direito, todavia, não pode passar  por cima dos direitos dos outros ou constituir um crime.

Segundo a colunista, o fato da região latino-americana ter um passado marcado por golpes militares e governos não-democráticos se reflete, ainda hoje, na administração dos países. Em alguns casos, as próprias Constituições Federais  carregam valores e práticas desse período. “A falta de responsabilização de crimes cometidos durante as ditaduras também refletem um problema de superação do passado autoritário e repressor”, conclui.

Para além de insatisfações e ações antidemocráticas, a sociedade brasileira ainda acredita e apoia o regime democrático. É o que mostra uma pesquisa regularmente realizada pelo DataFolha desde a redemocratização, no final da década de 80. No estudo, é medida a predileção do brasileiro pela democracia em detrimento aos regimes ditatoriais. Os dados mais recentes mostram que, mesmo em crise, nunca se acreditou tanto na democracia como o melhor regime político. Para Rafaela, diretora do DCE UFRJ : “Precisamos lutar não só para manter a democracia que conhecemos, mas lutar inclusive para avançar no conceito de democracia”.

 

A questão histórica ainda presente

‘’Vivemos em uma América que passa fome, algo que não podemos perder de vista.’’

 

Conversamos com o professor e doutor em história, Luciano Cesar Costa, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), acerca das perspectivas históricas que permeiam a formação da América Latina, bem como, a atual conjuntura e as expectativas futuras para os governos democráticos da região.

Portal: Em seu livro ‘’ As veias abertas da América Latina’’, o escritor e jornalista Eduardo Galeano afirma: ‘’Do descobrimento aos nossos dias, tudo sempre se transformou em capital Europeu ou, mais tarde, Norte Americano’’. Qual a influência atual do capital estrangeiro para com os governos democráticos da América Latina?

Luciano: Não podemos nunca deixar de pensar que a influência do capital estrangeiro é um processo histórico. Desde a colonização até a famosa política do Big Stick estadunidense ou o intervencionismo durante o golpe militar de 1964, essa realidade está presente. Naturalmente, o capital ainda continua a dominar essas relações, e como tal, está mais preocupado no lucro direto do que no respeito ao sistema democrático. Assim, ele vai continuar a exercer influências diretas nas políticas da América Latina. Não é preciso mais enviar navios, aviões, CIA quando existem governos latinos prontos a obedecer ao capital estrangeiro. Mas vale ressaltar que nós compreendemos muito menos esses mecanismos hoje do que costumamos pensar. 

 

Portal: De que forma você acredita ser possível superar os séculos de exploração implementados na América Latina, e assim, construir um novo continente, mais justo e democrático para todos?

Luciano: Indiscutivelmente, os anos de uma economia agroexportadora e dependente dos mercados estrangeiros cobraram seu preço. As economias latinas são dependentes, quando não de insumos básicos, de tecnologias. Superar essas mazelas passa necessariamente pela ideia de um governo autônomo, capaz de orientar sua política econômica de maneira mais ampla. É necessário entender as potencialidades e defender uma economia sólida, menos dependente das especulações internacionais. Somente com essa base material garantida, outras questões importantes podem ser resolvidas. 

 

‘’Sempre digo que a fome é a senhora, ou seja, as questões materiais imediatas precisam estar na pauta do dia dos países da América Latina.’’

 

Portal: Você ainda acredita em utopias? Se sim, quais são as suas utopias para a América Latina?

Luciano: Sou professor, acho que é um dos pré-requisitos da minha profissão acreditar em utopias. A mais extravagante delas é uma cooperação latina mais ampla, e é claro que essa cooperação tem reflexos nas classes mais pobres. Que mazelas como fome, miséria e desemprego deixem de assolar os povos latinos. No campo pragmático, essa cooperação só pode ocorrer em grandes blocos econômicos, como Mercosul ou Unasul. Durante os anos 2000, com diversos presidentes progressistas pela América, chegamos perto disso. Mas essa não parece ser uma preocupação do atual governo, mas aí estaria falando de distopias e não de utopia.

Reportagem e infográficos: Beatriz Chagas | Isabela Garz | João Pedro Abdo

Supervisão: Ana Júlia Oliveira | Carolina Mie | Camila Hucs

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