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A Evolução e os Obstáculos para a Valorização das Rodas Culturais

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As rodas, cultura herdada do Hip Hop e dos subúrbios estadunidenses, têm tomado as ruas e crescido em popularidade por todo Brasil. Em 2010, o Circuito Carioca de Ritmo e Poesia (CCRP), fundou as Rodas Culturais, encontros regulares que envolvem diversas formas artísticas e constroem espaços de resistência e expressão, principalmente, para os jovens periféricos e marginalizados. Porém, como comentou Allan Freestyle, ex-MC e organizador da Batalha do Coliseu, ainda falta reconhecimento e valorização para essas manifestações culturais: “as pessoas só vão aceitar essa vertente da cultura quando estiverem em uma novela”.

A FESTA QUE MUDOU A MÚSICA 

Para conhecer a história das batalhas de rima e das rodas culturais no Brasil e no estado do Rio de Janeiro, é preciso voltar no tempo, mais precisamente em 11 de agosto de 1973, no Bronx, Nova Iorque. Nesse dia, o DJ Kool Herc realizou uma festa que mudou a história da música para sempre. A fim de inovar seus sets, Herc tocou apenas o instrumental e os breaks das músicas de funk e soul da época. Os MCs da festa gostaram da novidade e começaram a acrescentar rimas às batidas. Foi aí que o hip hop nasceu. 

Com o seu sucesso, o gênero musical chegou ao Brasil na década seguinte, 1980, na cidade de São Paulo. Conhecida como o berço do hip hop nacional, a Estação de Metrô de São Bento foi o local onde a comunidade do hip hop começou a se formar no país. Daí em diante, o hip hop se espalhou pelo resto do Brasil. 

Mas foi no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 que as rodas culturais com suas batalhas de rima surgiram, com os mesmos propósitos do hip hop: perpetuar a cultura urbana e discutir a realidade social. Para Alexandre Almeida, bolsista do 8º período do curso de Publicidade e Propaganda da ESPM, cria da Rocinha, comunicador popular e autor de um TCC que estuda a Roda Cultural da Rocinha como instrumento para a comunicação comunitária, uma das razões desse movimento ter ganhado popularidade no Brasil foi a mesma para o resto do globo: “As pessoas da periferia se sentiram representadas. E representatividade, principalmente para os negros, era algo muito difícil naquela época dos anos 80 e 90, em que o padrão de beleza eram brancos e ricos. O hip hop quebrou essa sina”.

Pioneira não só no estado do Rio de Janeiro, mas também no Brasil, a Batalha do Real (BdR), criada em 2003, na Lapa, foi a primeira batalha de rima organizada. Já existiam outros eventos, mas a BdR foi a primeira que instituiu regras, teve constância e realizou batalhas de rima, com até mesmo premiação no final. Era apenas questão de tempo até que servisse de modelo para outras batalhas que viriam a surgir, não só no estado, mas em todo o Brasil, como a Batalha da Santa Cruz, pioneira em São Paulo, e as mais famosas atualmente, como a Batalha da Aldeia, Batalha do Coliseu, Batalha do Tanque, entre várias outras. 

A influência da Batalha do Real é tanta, que foi crucial para a criação dos decretos municipais nº 36.201/2012, que dispõe sobre o programa de desenvolvimento cultural carioca de ritmo e poesia, e n° 41.703/2016, sobre os procedimentos de autorização das rodas de rima. Já em 2018, como marco de uma conquista para sua visibilidade e reconhecimento, a cultura hip hop e todas as suas manifestações artísticas, como break, grafite e rap tornaram-se patrimônio cultural e imaterial do estado do Rio de Janeiro.

Almeida acredita que o rap tenha se popularizado ainda mais no Brasil pela diversidade cultural do país. Segundo o comunicador, essa vertente artística é uma ótima introdução à cultura, principalmente, para os jovens marginalizados: “Essa é uma das virtudes das rodas culturais. O rap tem uma abordagem não professoral para temas mais complexos, o que facilita e, mais importante, possui uma cultura que te instiga a aprender, a procurar e entender melhor a história e a sociedade”.

O COLISEU EM MEIO A UM MAR DE BATALHAS

Como toda terça-feira, o público lota a Praça da Bandeira para a Batalha do Coliseu. Foto: Guilherme dos Santos

Nos últimos anos, houve um crescimento de ocupações artísticas no espaço urbano do estado Rio de Janeiro que, atualmente, conta com mais de 300 batalhas ativas. A professora Rôssi Alves e estudantes do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense (UFF), do Campus de Rio das Ostras, têm desenvolvido projetos e pesquisas sobre as rodas culturais e as batalhas de rima. O Arte de Rua e Resistência é uma iniciativa que busca registrar, proteger e valorizar esses encontros, ajudando a legitimar e reconhecer a existência de uma rede atuante de produção cultural e política em toda cidade. 

Dentre as centenas de rodas culturais, a Batalha do Coliseu foi criada em 2019 e faz parte desse “boom” cultural, surgindo durante o hiato das batalhas do Tanque e do Real, as duas mais famosas do estado do Rio de Janeiro. A Batalha do Coliseu ocupou o espaço deixado por essas duas rodas e cresceu de maneira exponencial. Seus organizadores souberam monetizar o evento de forma inteligente e estratégica ao dedicar seus focos nas redes sociais. Só no Instagram, o encontro tem mais de 300 mil seguidores.

A Batalha do Coliseu começou na praça Agripino Grieco, no Méier. Bastante gente se reunia no local e, com o aumento do movimento, 16 MCs foram selecionados para a primeira edição do encontro. Entretanto, devido a denúncias de moradores no entorno da praça, o evento foi transferido e se reencontrou e reestruturou na Praça da Bandeira, localizada na Grande Tijuca. Apesar das desavenças com o poder público terem se tranquilizado, organizadores e artistas ainda lidam com reclamações e burocracias para manter a roda cultural. 

João Vitor da Costa Ramos, mais conhecido como MC Gine, é um dos rappers participantes da batalha e revelou a importância que ela tem para todos que proporcionam o encontro: “A Batalha do Coliseu tem muita relevância para o cenário carioca e nacional. Ela proporciona, para nós MCs e organizadores, uma oportunidade única. E a batalha tende a evoluir e a gente almeja isso, pois vivemos do rap e hip hop e poucos entendem e sabem como é difícil essa experiência de manter esta batalha de pé”.

O DUELO E AS COMPETIÇÕES  

Assim como no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, coletivos também se mobilizam  em prol do hip hop. A Associação Cultural Família de Rua, em agosto de 2007, iniciou seus trabalhos embaixo do viaduto de Santa Teresa, no centro de BH. Procurando ser um espaço de reunião de todos os elementos que envolvem a cultura, como break dance, grafite e discotecagem, e tendo na batalha de MCs o seu carro chefe, o movimento ocorre às sextas-feiras, de forma quinzenal. Antes um blog com vídeos que cobriam as rodas, o Família de Rua, em 2012, passou a organizar, em acordo com as organizações estaduais e com um regulamento comum, o “Duelo de MCs”, que se tornou a maior competição nacional que ocorre anualmente e tem sua fase final sediada na cidade de Belo Horizonte.

No início, o duelo envolvia apenas os estados do Sudeste, Distrito Federal, Pernambuco e Bahia. Com o crescimento do torneio, os organizadores passaram a contar com núcleos e responsáveis por batalhas em todos os estados, em um processo classificatório que se inicia com as pré-seletivas no mês de maio. 

As pré-seletivas classificam para os torneios regionais em cada estado do Brasil, onde os vencedores são convidados a participar do duelo nacional. As disputas ocorrem entre os 27 vencedores das etapas regionais e outros 5 que são selecionados através de um processo de “repescagem”, em que batalham os MCs que conseguiram chegar até as semifinais de seus estados, totalizando 32 participantes.

Segundo Pedro Valentim, integrante da Associação Cultural Família de Rua, o maior obstáculo para a realização dos duelos pelo Brasil é a arrecadação de dinheiro. “A grande dificuldade final de ano a ano continua sendo a grana, porque quando você pensa num investimento, tanto na perspectiva das políticas públicas, mas também em patrocínio direto, é muito difícil a gente conseguir descentralizar”.

RIMAS DE ESPERANÇA 

Mais que lugares para manifestações culturais através da música e outras formas de arte, as rodas são espaços de resistência e expressão, principalmente, para jovens periféricos e marginalizados. Guilherme Marcelino dos Santos, jornalista, Mestre em Cultura e Territorialidades pela UFF, com Doutorando em Sociologia na mesma universidade e integrante do projeto Arte de Rua e Resistência abordou a importância das batalhas de rima e as oportunidades oferecidas para os grupos impactados por elas: “As rodas têm um papel fundamental como espaços de resistência simbólica e afirmação de identidades, sobretudo para os jovens das periferias urbanas. A gente costuma acreditar que o acesso à cultura é universal, mas isso não é verdade — há barreiras econômicas, simbólicas e institucionais”.

Santos citou que atividades culturais, como ir ao teatro e ao cinema, podem ser inviáveis financeiramente ou inibir aqueles que não se enxergam nesses lugares. Porém, segundo ele, as rodas são encontros de rua, abertos, horizontais e comunitários. Oferecem uma vivência cultural ampla, em que arte urbana se expressa de diversas formas: o grafite, o break, o beatbox, a produção musical. 

As batalhas também expandem as possibilidades e os horizontes dos jovens, ao oferecer não apenas formas de expressão artística, mas também trajetórias de carreiras possíveis. São nesses espaços que se formam redes de apoio, conexões com produtores, DJs, educadores e artistas visuais. Essa dinâmica está muito entrelaçada e adaptada à realidade atual dos meios de comunicação, em que a internet potencializa a imagem e narrativas pessoais. Nas rodas culturais, esse raciocínio está muito presente, pois os jovens sabem que haverá celulares e câmeras apontadas para eles. Assim, nutre-se a expectativa que uma rima certeira, um verso impactante possa circular e viralizar nas redes sociais. Pode ser uma vitrine, mas, essencialmente, é um palco de apostas, onde existe a projeção de transformar visibilidade em renda.  

Valentim, como um dos integrantes da produção da maior competição de duelos de rima do país, falou que ele se enxerga em posição de instrumento da cultura para os jovens: “Procuramos construir uma realidade menos violenta e mais harmônica. Tentamos ser mais ‘hip hop’ diariamente, atuar como um fio condutor que transmite os ideais dessa cultura para as novas gerações. É difícil. As nossas ações e projetos nos fazem lidar com o sonho dos artistas, mas sempre buscamos manter esses espaços de expressão, de mudança de atitude, de busca de perspectivas vivos para os jovens”.

Essa dinâmica tem seus limites. Assim como peneiras de futebol, existem inúmeras batalhas, talentos e vídeos que disputam a atenção do público e nem todos serão escolhidos. “Isso não invalida o valor do espaço, ao contrário, reforça sua importância como lugar de construção de autoestima, de pertencimento e de resistência. É um espaço de criação, de circulação de afetos, saberes e oportunidades. É a cultura operando como tecnologia social, como forma de reexistência — no sentido de existir apesar das opressões e desigualdades, e de criar novas formas de vida a partir disso”, completou o jornalista.

O CANTO QUE POUCOS ESCUTAM 

Atualmente a mídia oferece mais espaço ao rap do que há alguns anos. Artistas como Emicida, BK, Cabelinho, Azzy e MV Bill furaram esse bloqueio simbólico e apareceram em espaços, antes impensáveis, para quem veio do hip hop ou do funk. Entretanto, isso não significa que a cultura das rodas e das batalhas seja amplamente reconhecida. Para Almeida, o rap é uma contracultura, que contesta os moldes da sociedade e, “por isso, nunca interessou à grande mídia dar visibilidade para essas pessoas. O rap também é relativamente novo no Brasil, mas já é uma cultura popular imensa, só que ainda não possui a influência do samba, está no caminho” 

Na maioria dos casos, há uma apropriação seletiva, ou seja, o mercado e grande mídia selecionam expressões e figuras de seus interesses. Assim, eles mantêm estereótipos e ignoram as bases coletivas que formam esses movimentos, o que mantém a desvalorização histórica e estrutural dessas manifestações populares. Um caso que exemplifica bem essa relação aconteceu com o rapper Orochi. O artista foi campeão do Duelo de MCs Nacional, mas só ganhou os noticiários quando foi preso. Sua vitória foi considerada irrelevante para a grande mídia, enquanto a abordagem policial teve maior repercussão. Uma lógica seletiva, às vezes racista, e que explica o porquê dos corpos periféricos e negros serem enxergados com preconceito.

O ex-MC e atual organizador da Batalha do Coliseu, Allan Freestyle, disse sentir antipatia pelas pessoas que enxergam o rap de forma pejorativa e o associam à criminalidade e movimentos negativos: “É um sentimento repugnante que temos contra qualquer tipo de preconceito. É triste, pois na verdade, isso fala menos sobre o rap e mais sobre as pessoas, sobre como a sociedade funciona. Apesar da cena já estar dialogando com grandes marcas e quebrando barreiras, algumas pessoas só vão respeitar quando aparecer na Globo, em um formato e espaço de aceitação”.

Apesar de no Rio de Janeiro já existirem leis que reconhecem as batalhas e rodas como patrimônios culturais imateriais, o apoio é limitado e, na prática, pouco percebido. Por vezes, a coibição é feita pelas próprias autoridades, como a Polícia Militar, que suspende e inibe a atuação de encontros legítimos. Ainda são poucos políticos e gestores públicos engajados e comprometidos em auxiliar e fortalecer esses movimentos. 

A VISIBILIDADE QUE A INTERNET PROPORCIONA 

Mesmo que as rodas culturais ainda enfrentem preconceitos, com o passar dos anos, a visibilidade tem aumentado gradativamente. As redes sociais surgiram como meio de propagar e impulsionar a cena do hip hop e da cultura de rua. Vídeos com milhares de visualizações e engajamento projetam uma roda cultural com muito mais eficiência. Antigamente, uma batalha só era reconhecida por meio do “boca a boca” nas ruas.

A internet permitiu que esses encontros ultrapassassem os limites das praças e que artistas fossem reconhecidos em escala nacional. Santos declarou que a divulgação pelas redes sociais é um acerto que atinge um público já adaptado à nova realidade: “É um reflexo direto do nosso tempo. O público das batalhas não é só presencial. Ele quer acompanhar as rimas, rever os melhores momentos, comentar os versos mais impactantes, compartilhar cortes, saber dos bastidores. A internet criou essa possibilidade de uma participação contínua”.

Há 18 anos atrás, o YouTube apresentou o Família de Rua e o Duelo de MCs Nacional para o Brasil. Desde a criação do blog e a cobertura semanal das batalhas, foram os vídeos na plataforma que romperam as fronteiras regionais e conectaram o projeto com o país inteiro. Mesmo pensando em modelos alternativos de comunicação e divulgação, para Valentim e a galera do Família de Rua, não tem como fugir, é necessário estar presente nesses veículos e preparado para usá-los de forma estratégica e inteligente para atingir mais pessoas.

PARA SABER ONDE IR, É IMPORTANTE NÃO ESQUECER DE ONDE VEIO 

 

Praça do Ex-Combatente, em São Gonçalo, cheia para assistir a Batalha do Tanque que acontece às quartas-feiras. Foto: Guilherme dos Santos

Tanto para o jornalista quanto para o comunicador, o futuro das rodas culturais é promissor. A cena do rap e do hip hop está em constante crescimento e, sua capacidade de mobilizar grandes contingentes de espectadores já tem chamado a atenção de grandes marcas e eventos. MCs convidados a se apresentarem em palcos de grande visibilidade e personalidades, como o Xamã, que atua em novelas, são exemplos de que a cena, cada vez mais, se torna um tema menos segregado na sociedade.

Em São Paulo, a Batalha da Aldeia, onde os duelos são realizados em espaços fechados, com compra de ingressos e premiações para os vencedores, é um exemplo de como o futuro pode ser para esses encontros por todo o país. Para ambos especialistas, também não há dúvidas de que grandes nomes vão continuar surgindo das rodas. 

Santos já imaginou como esses eventos podem acontecer nos próximos anos: “O que impede, por exemplo, a realização de um megaevento inteiramente dedicado ao freestyle? Nada. Já temos exemplos que apontam esse caminho, como o Duelo Nacional de MCs em Belo Horizonte, que atraem milhares de pessoas e movimentam toda uma cadeia cultural”.

Ele ainda assegurou que para esse futuro ser promissor são necessárias políticas públicas consistentes, mudanças na cobertura midiática e, sobretudo, reconhecer que essas rodas não são somente entretenimento e, sim, espaços de formação crítica, de construção de cidadania e de disputa simbólica por direitos.

Valentim complementou que também é preciso trabalhar de forma mais unificada e profissional. Segundo ele, é possível aprimorar, desde a relação com os MCs, jurados, apresentadores, DJs, até conseguir técnicos de som, de luz e de produção especializados em todas as batalhas. 

O porta-voz da Família de Rua pediu atenção para que os artistas, organizadores e espectadores não percam a essência que deu origem à cultura do hip hop e mantenham equilíbrio: “As batalhas têm se tornado uma febre e a juventude é introduzida à cena através dos duelos de MCs. Isso é algo significativo, mas não podemos esquecer de onde viemos. O hip hop é cultura que tem a ver com luta, resistência, reivindicação de direitos e transformação da realidade, isso faz parte do que somos”.

 

Reportagem: Alexandre Hid, Daniel Pinheiro, Gabriel Balster e Pedro Henrique Mello

Supervisão: Guilherme Costa, Guilherme Freitas e Vinicius Carvalho

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