Crítica: Flow (2024)
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Filme mais assistido na história da Letônia rendeu estátua em homenagem ao gatinho preto em Riga, capital do país, e ganhou reconhecimento mundial após surpreendentes vitórias no Globo de Ouro e no Oscar na categoria de Melhor Animação. Surpresa àqueles que não tinham visto, pois Flow é uma brilhante obra cinematográfica, cheia de simbologias sutis e decisões interessantes. A produção independente acompanha a aventura de um gatinho em um mundo distópico que, em decorrência do aumento do nível da água, perde seu lar e se vê forçado a lutar por sua vida ao lado de outros animais.
Um dos principais diferenciais do longa é a ausência de diálogos e a escolha, inusitada, pelos sons ambiente e naturais dos animais. Uma opção que poderia afastar o público deu espaço para o incrível detalhamento dos produtores ao comportamento das espécies presentes na obra, que apresentam muita personalidade. Além de muito estudo e pesquisa, a equipe captou o som de animais reais. O êxito dessa decisão ainda ressalta a capacidade da narrativa cinematográfica da obra e expressa de forma ímpar como a linguagem do filme é universal, o falante de qualquer idioma compreende o enredo. O diretor do Flow, Gints Zilbalodis, contou que a decisão para Flow não possuir conversas foi inspirada em Jacques Tati, um mímico e diretor de cinema francês, e pelo anime Future Boy Conan. “Queria que os animais se comportassem como animais reais, sem falas, com movimentos naturais. Vemos o filme imaginando nossos próprios pets, o que torna tudo mais impactante”, completou Zilbalodis.
O início do filme se propõe a mostrar um pouco da rotina tranquila desse gatinho que vive em uma floresta. Serena até demais, a falta de humanos, até na casa que o gato usa para se abrigar, deixa a audiência inquieta e cheia de perguntas. Aliás, toda a ambientação de Flow, das diferentes estruturas até as místicas paisagens, passam um ar de mistério no plano de fundo da trama principal do longa, fazendo com que alguns se questionem: seria esse um mundo pós-apocalíptico?; Alguma calamidade atingiu a Terra? A presença de edificações e objetos dá a entender que a humanidade existiu, mas Flow não estabelece o que realmente aconteceu com o planeta.
Fato é que, essa calmaria do começo, é logo quebrada após uma enorme inundação forçar o gatinho a encontrar um local para refugiar-se. E são nas cenas de ação e tensão que a inexistência de falas permite que a trilha sonora brilhe de verdade. Mesmo não sendo revolucionário, o ritmo dos sons dão o tom correto para todas as cenas de suspense e nervosismo e, como um todo, a música consegue cumprir um papel importante ao guiar o público durante um filme sem conversação. Além disso, sem o apelo de interlocuções, Flow opta por um ritmo acelerado de acontecimentos, mas que não compromete a narrativa, para prender a atenção dos espectadores.
Através de inúmeras circunstâncias adversas, o gatinho descobre um porto seguro inicial em um barco à deriva abandonado. É a partir desse momento que ele precisa deixar de lado as diferenças e aprender a conviver ao lado de outros animais para sobreviver às dificuldades que esse mundo em ruínas apresenta. Durante o filme, o felino é acompanhado por um cachorro brincalhão da espécie golden retriever, uma capivara sossegada, um lêmure colecionador e por uma ave de rapina orgulhosa e convicta. Mesmo que todos sigam alguns estereótipos clássicos, a dinâmica entre os personagens é muito bem trabalhada e curiosa de assistir, uma vez que só os entendemos através de grunhidos e expressões faciais.
Apesar de não ser o foco da obra, também é interessante como a questão ambiental é sutilmente abordada em Flow. Talvez não seja a intenção, mas o estado em que o mundo se encontra durante o filme, pode ser a interpretação dos produtores acerca do futuro de nosso planeta, um possível desfecho em que a natureza reagiu e perseverou sobre aqueles que a desrespeitam atualmente.
Produzido por uma pequena equipe e em 5 anos e meio, Zilbalodis falou que não existem cenas excluídas do longa e que não foram utilizados storyboards (simples ilustrações colocadas em sequência para a pré-visualização de cenas e animações), ele apenas “explorava os vários ângulos de câmera com os animais”. Além disso, o diretor disse que seus próprios pets que serviram de inspiração para o gatinho preto e o golden retriever do filme, e os demais animais foram estudados, meticulosamente, em zoológicos. Zilbalodis ainda afirmou que de todos os áudios de animais captados, a capivara é a única que não possui sons correspondentes à realidade. Por conta de sua voz ser mais aguda, o que, ao seu ver, não combinava com sua personalidade, optaram por usar sons de filhotes de camelo.
O sucesso de Flow surpreende ainda mais pela concorrência pesada que encarou na temporada, como Divertidamente 2 e Robô Selvagem. Os longas da Pixar e DreamWorks custaram, respectivamente, US$ 200 milhões e US$ 78 milhões. Mesmo tendo uma co-produção com França e Bélgica, com apoios financeiros do Centro Nacional de Cinema da Letônia, da Fundação Capital Estatal da Cultura da Letônia, do Centre national du cinéma et de l’image animée, ARTE France, Eurimages, RTBF e do Belgian Tax Shelter, a obra independente teve um orçamento de US$ 3,7 milhões. O filme, por exemplo, foi todo projetado e renderizado no Blender, um software online e gratuito para montagem de imagens 3D. Mesmo com números inferiores aos concorrentes, Flow tem, atualmente, uma bilheteria mundial de US$ 20 milhões.
Batendo de frente com animações 3D hiperrealistas, produzidas e finalizadas em computadores de última geração, Flow apresenta visuais mais simples. Porém, a obra se garante e ganha o público ao entregar uma fidelidade enorme em relação ao comportamento e expressão dos animais, o que permite maior identificação, engajamento e credibilidade na narrativa por parte da audiência.
Vale ressaltar que, mesmo com aparência mais modesta, o filme, ao meu ver, contém cenas belíssimas. Destaco aqui a passagem entre o gatinho e a ave de rapina no cume de uma montanha, uma sequência cheia de simbolismos e visualmente linda. Portanto, Flow, além de uma ótima história sobre empatia e superação de diferenças, é também uma narrativa que retrata a perseverança. E, assim como no filme, na vida quando esse sentimento é compartilhado e alinhado com mais pessoas quase tudo se torna possível, pelo menos, mais fácil de suportar ou/e realizar.
A aclamação mundial não se compara ao orgulho nacional da obra para a Letônia. Além da vitória histórica no Globo de Ouro, o filme é também a primeira obra cinematográfica do país a ser indicada e vencer um Oscar. Com mais de 300 mil ingressos vendidos e US$ 1.8 milhão nas bilheterias, Flow se tornou o longa mais visto nos cinemas locais. A exaltação é tanta que uma estátua do gatinho preto foi construída e está exposta em Riga, capital do país. Por conta de suas realizações e por promover a Letônia para o mundo, Gints Zilbalodis, recebeu o prêmio de Cidadão de Riga do Ano de 2024. O diretor e outros envolvidos no longa também receberam honrarias e prêmios em dinheiro, algo que só costuma acontecer com medalhistas olímpicos e grandes nomes do país. E o Globo de Ouro, recebido pela vitória na categoria de Melhor Animação, chegou a ficar em exibição no Museu Nacional de Arte da Letônia. Será que agora a estatueta do Oscar também ficará exposta para visitação no mesmo museu?
Crítica: Pedro Henrique Mello
Supervisão: Júlia Mota e Vinicius Carvalho