Portal Literário- A Hora da Estrela
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“Quando não escrevo, eu estou morta. Agora eu morri, vamos ver se eu vou renascer de novo”. Estas foram as palavras de Clarice Lispector em entrevista à TV Cultura, pouco antes de escrever sua última e mais célebre obra, A Hora da Estrela.
Enigmática, traiçoeira, feiticeira e glamourosa. Estas foram algumas das palavras que os críticos usaram para descrever Clarice e sua literatura ao longo de sua vida. Lida por muitos, mas compreendida por poucos, a escritora compartilhou em sua obra literária angústias existenciais e internas através de uma escrita moderna e transgressora.
Erroneamente chamada de hermética, Clarice insistia na simplicidade de suas histórias e personagens, ao demonstrar que a verdadeira complexidade reside nos leitores e na própria vida, sendo este, o verdadeiro mistério. É com este enigma que ela começa seu livro. Segundo ela, a vida e nossas histórias todas começam com o sim, inclusive a história da protagonista Macabéa. Datilógrafa, pobre, jovem, nordestina e residente do Rio de Janeiro, essa personagem nos é apresentada como alguém insossa, alheia à vida e sem perspectiva de futuro.
O narrador/escritor do livro, Rodrigo S.M. (alter ego de Clarice), criou ao todo 13 títulos para a obra, que ficou mais conhecida como A Hora da Estrela. Ele demonstra de maneira parcial seu desgosto pela protagonista, enquanto reforça a todo tempo sua ingenuidade, “burrice” e insignificância diante do mundo, de maneira que os próprios leitores são levados a criar aversão a personagem. Assim, rapidamente notamos que estamos acompanhando uma vida muito pequena, de alguém sozinha e que não faria falta no mundo. No entanto, curiosamente nos pegamos instigados a terminar sua caminhada como se fosse uma confidente nossa.
Mas, podem se perguntar, o que torna a personagem tão hipnótica?
A resposta pode diferir de pessoa a pessoa. Escrever sobre Clarice e tentar entendê-la pode ser uma armadilha, considerando que ela mesma tinha dificuldade de se entender às vezes, mas o mais interessante em Macabéa é que ela é inexperiente. Não somente no sentido sexual. Macabéa é inexperiente da vida. Inexperiente de felicidade, de amizade, de amor. A tristeza que se apodera diante dessa existência tão patética nos comove ao nos fazer sentir empatia por alguém tão apagado.
Macabéa não tem pais, amigos ou namorados. Vive em uma pensão com outras moças pobres que não lhe são íntimas. Seu desempenho no trabalho é tão ruim que seu patrão não a demite por pena e ela se alimenta exclusivamente de cachorro quente por não ter dinheiro para outros alimentos. Eventualmente encontra um homem com quem tenta experimentar o amor, mas sua tentativa é falha.
Sua existência parada, apenas parece vazia. Pois apesar de nada conhecer, tem a capacidade de sentir um turbilhão de sentimentos que a agonizam por sentir que apenas sobrevive ao invés de viver.
A delicadeza e fragilidade da personagem que, assim como muitos, não conhece o mundo, instiga. Para um livro de poucas páginas, poucos personagens e poucas falas, provoca grandes reflexões e críticas a respeito de tópicos como identidade, propósito e coletividade. A personagem aos poucos quebra a barreira entre leitor/ personagem/ narrador, e nos faz começar a perceber as diversas existências ao nosso redor ao notarmos detalhes que antes passavam despercebidos.
O final é marcado pela morte. A hora da estrela, hora de maior brilho, que surge como um incômodo, tanto para Clarice quanto para nós. É uma surpresa lembrar que as coisas tem um final tão súbito e que, talvez, no caso do livro, exista um senso de felicidade pela primeira vez na história de Macabéa. É difícil entender de onde surge esse sentimento em meio a tragédia, mas ele está ali. Esse é o enigma de Lispector.
Na dedicatória ela afirma: “Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta resposta”
Clarice morreu alguns meses depois de finalizar a triste história de Macabéa, mas sua mensagem não poderia ter sido mais viva. A tristeza é intrínseca à vida, e é impossível fugir dela. As angústias da escritora e da sua personagem são as mesmas que as nossas. No entanto, é possível acender uma luz quando atingimos a nossa “hora da estrela”, da forma que Macabéa atingiu a dela tão inesperadamente. Como o próprio Rodrigo ressaltou, ao finalizar a pesada história de Clarice, não devemos “esquecer que por enquanto é tempo de colher morangos”.
Confira os outros títulos de A Hora da Estrela:
A hora da estrela
A culpa é minha
Ela que se arranje
O direito ao grito
Quanto ao futuro
Lamento de um blue
Ela não sabe gritar
Uma sensação de perda
Assovio no vento escuro
Eu não posso fazer nada
Registro dos fatos antecedentes
História lacrimogênica de cordel
Saída discreta pela porta dos fundos
Crítica: Davi Magalhães
Supervisão: Carolina Dorfman