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“Único bem que eu tive na vida foi um carro, o resto eu gastei pra me manter vivo”

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A vida do ator Marcos Oliveira, que interpretou o Beiçola em A Grande Família, após 14 anos nas telas da Globo

O supermercado Zona Sul da Arnaldo Quintela, em Botafogo, costuma ser movimentado na parte da manhã. Os clientes que o frequentam são fiéis e com certeza já escutaram uma voz grave, afinada e com um vibrato único, cantarolando pelos corredores do mercado. Sempre com a sua sandália crocs e sua ecobag no ombro, o ator Marcos Oliveira é presença constante neste mercado, há mais de 15 anos. Enquanto só se ouve o barulho do ar condicionado e das bipadas no caixa, a voz penetrante de Marcos faz com que todos parem para escutar. Ele canta alto. O ator disse que pretende fazer shows para o público da terceira idade com um repertório que inclui MPB, Jazz e samba, mas precisa de patrocínio. Às vezes vai ao mercado, não compra nada e bebe um café com leite na bancada onde ficam os pães, bolos e torradas. Oliveira nem precisa mais pedir, quando ele chega, a simpática moça já prepara seu café e, sorridente, lhe dá um bom dia. Ele retribui e, com carisma, faz piadas com as atendentes. Diz que gosta da “turma da manhã” do mercado. Depois do café ele atravessa a rua e vai na banca do seu Antônio comprar um maço de cigarro.

Desde seu último trabalho na TV Globo, a novela Deus Salve o Rei (2018), que Marcos luta por dinheiro para pagar suas contas. Com a pandemia, os trabalhos acabaram e a reserva financeira também. “Eu passei fome. O Beiçola já passou fome”, afirmou. Com a ajuda de seu amigo Jorge, Marcos abriu uma vaquinha virtual em maio de 2021, que arrecadou R$60.000. Além de seus gastos mensais obrigatórios, o ator tinha dívidas avaliadas em quase R$40.000. Marcos também carrega alguns problemas de saúde. Com diabete e psoríase, ele ainda possui uma fístula entre a uretra e o ânus, o que causa sérias consequências em seu organismo. No dia 6 de dezembro de 2021, Marcos foi internado no hospital municipal Souza Aguiar, no Centro do Rio de Janeiro, delirando de dor. Oliveira sonha com a cura dessa fístula: “hoje, existe uma técnica que vai resolver esse meu problema”, confirmou o ator. A técnica consiste em retirar uma parte do músculo da perna e colocar no períneo, e retirar uma parte da mucosa interna da boca e enxertar na uretra.

Às 20:30 do dia 14 de março, liguei para o Marcos por chamada de vídeo. Havia marcado e ele foi pontual com o combinado. Era uma noite quente no Rio, seu ventilador de teto estava ligado e o Jornal Nacional passava em sua televisão com o volume alto. Marcos me atendeu deitado e parecia debilitado. Está passando por sua 2ª colostomia, resultado da fístula. Aos 65 anos de idade, Oliveira mora de aluguel em um apartamento de dois quartos, em Botafogo, com suas 3 cadelas: Mel, Preta e Lolita. Dona Lurdes, seu “anjo da guarda”, trabalha em seu apartamento duas vezes por semana. Ele não tem família. “Tenho uma sobrinha e um sobrinho, a sobrinha ainda me liga às vezes”. Perguntei como era a relação com seus pais e ele me corrigiu: “meus progenitores”, disse que não tinha afetividade.

Marcos Oliveira nasceu em Santo André, no ABC paulista, no dia 27 de maio de 1956. Sua progenitora era empregada doméstica e seu progenitor era guarda do museu do Ipiranga. Oliveira era o único da família a sonhar com as artes cênicas. Começou no teatro amador, depois no infantil e logo deslanchou. A obra que mais se orgulhou de fazer, foi a peça teatral Macunaíma, com a direção do célebre Antunes Filho. Com o espetáculo, o ator viajou a Europa toda. Na televisão, estreou na novela Vale Tudo, em 1988. Após isso, colecionou participações em novelas, programas e espetáculos teatrais. Voltou aos palcos com Lisbela e o Prisioneiro, com direção de Guel Arraes, que foi a porta para o seu retorno à televisão. Arraes foi chamado para dirigir o núcleo do remake de um futuro programa na TV Globo e convidou Oliveira para uma participação. O projeto inicial de A Grande Família era para ter 20 capítulos, mas o sucesso foi tamanho que os 20 se tornaram 485 – foram quase 14 anos no ar. 

O personagem Abelardo, também chamado de Beiçola, iniciou como participação especial e só após 2 anos que a Globo decidiu efetivá-lo. Marcos possuía um contrato restrito ao programa e quando acabasse A Grande Família, acabava sua ida ao Projac até surgir outro trabalho. “Eu era contratado por obra, bicho, pela Globo jamais. Eles só querem saber de galã”, disse o ator. Em 2018, todos os episódios de A Grande Família, reprisaram e renderam algo em torno de R$120.000 para o ator. Em 2019 lançou sua peça teatral Evolução, criada e escrita por ele mesmo. Com o espetáculo, ele viajou para diversas cidades do Brasil, inclusive para o ABC paulista, onde ninguém da sua família compareceu para prestigiá-lo. “O dinheiro que eu ganhei com a peça dava para sobreviver”, finalizou.

De início Marcos não havia sido contratado para compor o elenco de A Grande Família e, por isso, o ator não se sentia “bem quisto pela diretoria” do programa. Não participava das reuniões e hoje não fala com ninguém do núcleo. “Existia o clero: Pedro Cardoso, Marco Nanini, Lúcio Mauro Filho, Marieta Severo, Rogério Cardoso e Guta Stresser. E o baixo clero: eu, Evandro Mesquita e Tonico Pereira”, completou em tom de deboche. Após quase 10 anos do término do programa, as pessoas só reconhecem o Marcos como Beiçola. Perguntei se ele se incomoda com isso: “eu cago, bicho, sempre vou carregar esse estigma”. O personagem é propriedade da TV Globo e ele não pode usá-lo para realizar nenhum tipo de trabalho fora da emissora. Nem ele mesmo quer, diz que já passou essa fase. “Quando a gente assina com a Globo, temos que dar até as calcinhas da mãe”, completou peremptório. No meio da entrevista ele pediu para que eu esperasse um instante para acender um cigarro e eu emendei perguntando: “caso apareça algum trabalho na Globo agora, você iria?”. E ele me respondeu: “eu quero trabalho. Não tenho isso de Globo, Record ou SBT, eu quero trabalhar e trazer meu dinheiro para casa”.

Desde 2017 que a Globo vem fazendo uma reforma para diminuir custos. O super-salário sempre foi algo conhecido na emissora. De 2001 a 2014 interpretando o beiçola, o ator ganhava um salário bom por mês. Na época, ainda de aluguel, Oliveira morava em Botafogo e já sofria com seus problemas de saúde. A Bradesco Seguros, plano de saúde que a Globo cedia aos seus funcionários, chegou a cobrir os hospitais que o ator frequentava, mas os médicos eram de sua confiança e o plano não cobria. Além dos médicos, remédios, aluguel e contas, Marcos contratou o serviço de Home Care (assistência médica domiciliar) que o acompanhava diariamente. Diz que não se arrepende do que fez com seu dinheiro, pois tudo foi gasto com responsabilidade. “Consertei meus dentes e paguei meus procedimentos médicos. O único bem material que tive foi um carro, o resto eu gastei para me manter vivo”.

Marcos terminou de gravar a quinta temporada de O Dono do Lar, programa que atualmente vai ao ar no canal Multishow, e espera seu último salário no próximo dia 30. Depois não sabe como vai pagar suas contas. O programa, que é protagonizado por Maurício Manfrini – também conhecido como Paulinho Gogó – conta com a participação de Marcos Oliveira interpretando o Seu Rodolfo, mas em algumas cenas os atores ainda se dirigem a ele como Beiçola. Suas aparições, por vídeo chamada, foram gravadas em um apartamento na Barra da Tijuca que o Grupo Globo alugou. “Adoro o Multishow. A TV Globo está com uma roupagem americanizada: é luz de um jeito, câmera de outro. A gente é cultural brasileiro, bicho, e a Globo está fugindo disso”, enfatizou. Ele tem vontade de voltar com seu espetáculo Evolução, mas disse que o politicamente correto algemou a comédia e muitas frases existentes no texto incomodavam o público. “Comédia é pra libertar e não para aprisionar”, completou o ator.

Atualmente, Marcos voa sob a escuridão. O próximo mês volta a ser um desafio. É incerto. Um ator com papéis de sucesso, popular e que passa pelas mesmas dificuldades da grande maioria da população brasileira, pede ajuda abertamente. Paulo Gustavo, seu amigo, deu nome à lei que recentemente foi aprovada pelo plenário do senado. 3,8 bilhões de reais – do Fundo Nacional de Cultura – podem ser repassados para projetos culturais e ajudar diversos artistas que estão passando pelo mesmo problema que Marcos Oliveira. O que não falta são projetos. A próxima etapa é a sanção presidencial, que valida a lei. Enquanto isso, o  Zona Sul da Arnaldo Quintela está em silêncio. O barulho do ar condicionado e das bipadas no caixa tomaram conta do local. Com a bolsa de colostomia, Marcos não consegue ir ao mercado e está de repouso em casa. Espera que em breve consiga resolver o problema de sua fístula para voltar a trabalhar. Abriu uma nova vaquinha virtual, no último dia 21, pois não sabe como vai ser depois do dia 30. Quando eu estava agradecendo pela entrevista, ele me interrompeu e disse: “eu quero trabalhar, quero trabalho”. Marcos grita pela cultura. Ele só quer trabalhar.

REPORTAGEM: Leonardo Marchetti

SUPERVISÃO: Brenda Barros

CRÉDITOS IMAGEM DE CAPA: Paulo Belote/TV Globo

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