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A liberação da maconha na NBA e a construção de uma liga progressista

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A Associação de Jogadores da Liga de Basquete dos Estados Unidos assinou um novo contrato de trabalho com a NBA, principal liga de basquete norte-americano e do mundo, que libera o uso da maconha por parte dos atletas. O acordo, que durará sete anos, visa a não punição de atletas por parte da liga, que antes sofriam com a suspensão por cinco jogos após o terceiro antidoping positivo para a erva. Desde o início da pandemia do Covid-19, os atletas não precisavam mais fazer testes para detectar o uso da planta,  mesmo que proibida pela liga. Em 2021, a NBA prolongou por mais 1 ano a liberação da erva para uso medicinal.

A legalização da cannabis nos Estados Unidos caminha cada vez mais rápido e isso tem refletido na liga. Cerca de 36 estados americanos já permitem o uso da maconha medicinal, e metade autoriza também o uso recreativo. Mesmo assim, em 2019 mais de 350 mil pessoas foram presas por possuir maconha, a maior parte das prisões aconteceram em estados onde a posse ainda é proibida. Joe Biden, presidente do país, perdoou milhares de americanos presos por “porte simples” de maconha pela lei federal, e pediu para que os governadores dos estados fizessem o mesmo.

A liberação por parte da liga é contrária às imposições da WADA (Agência Mundial Antidopagem), a droga está na categoria S8, de estimulantes, sendo proibida pelo código da agência por conter a substância THC, classificado com substância de abuso. Para os atletas, a maconha, além de ser utilizada de maneira recreativa, é usada de forma medicinal. A planta se encontra fora da lista de substâncias proibidas pela Agência Mundial Antidoping desde 2018. O canabidiol (CBD), substância não psicoativa derivada da planta, é utilizado pelos atletas para aliviar dores e inflamações, e ajuda em problemas como a insônia e a ansiedade. 

A médica Ana Caroline, especializada no uso medicinal da cannabis, explica que com essa medida os jogadores terão uma melhora na qualidade de vida. “Com o uso de produtos derivados de cannabis, ele vai ter melhora do quadro ansioso, vai ter uma qualidade de sono melhor e isso vai impactar na performance desse paciente. A gente sabe dos efeitos antioxidantes e anti-inflamatórios também dos produtos derivados de cannabis, então nesse processo a gente também compreende que auxilia na recuperação muscular”.

Ana Caroline aponta que a erva também pode causar problemas para um atleta. “O atleta pode extrapolar nas atividades e sofrer uma lesão, porque a dor se torna diferente com o uso. Então, isso seria um um malefício e um perigo.

Dentro da maconha, temos duas principais substâncias, o THC e o CBD, e cada uma delas tem sua função na medicina. Segundo a médica, o THC é uma substância psicoativa, responsável pelo efeito da droga, mas ele também funciona de maneira terapêutica. Já o CBD não possui efeitos psicoativos, e possui um maior potencial no combate contra a ansiedade. Existem apenas 3 espécies de plantas que originam o THC, a Cannabis: C. sativa, C. indica e C. Ruderalis. As substâncias apresentadas dentro destas plantas fazem parte do sistema endocanabinoide, com receptores localizados em diversas partes do sistema nervoso central.

Ainda que a liberação seja recente, o uso de maconha é comum na NBA. Jogadores como Kevin Durant e J.R. Smith já admitiram em entrevistas que usaram e defendem. Steve Kerr, ex-jogador e técnico multicampeão, contou que usou a maconha e outros remédios alternativos para aliviar dores nas costas, causada por uma cirurgia realizada em julho de 2015. O ex-atleta afirmou que utilizou cannabis quando estava de férias. “Foi depois de pesquisar e conversar com muitas pessoas que eu usei. Não sei se teria falhado em algum teste de drogas. Eu nem sei se estou sujeito a um exame desse tipo ou alguma lei da NBA. Mas valeu a pena. Eu procurava soluções para as dores, tentei analgésicos e outros tipos de drogas também. E essas foram piores, então é complicado”.

Além de Steve, Kareem Abdul-Jabbar, o segundo maior pontuador da NBA, afirmou que fumava maconha com frequência e que, por muito tempo, só se relacionava com pessoas que usavam a substância”. A revelação veio em sua autobiografia, de 1983, intitulada “Giant Steps”. O ex-jogador utiliza a maconha de forma medicinal até hoje para tratar as fortes enxaquecas, com as quais convive desde o início da carreira. Kareem foi preso enquanto dirigia sob efeitos da erva, em 2000, na Califórnia. Hoje, o estado é o maior mercado legal de maconha do mundo.

Phil Jackson, o maior campeão como técnico na história da liga, é mais um que defende a maconha como parte da cultura da NBA. O cartola – gíria para definir dirigente, diretor ou presidente de algum time – conta que utilizou a cannabis para tratar uma cirurgia nas costas, e que a erva “funcionou como um analgésico”. Para Jackson, é necessário discutir com a mente aberta sobre a utilização, devido a legalização da cannabis em diversos estados americanos – à época, Califórnia, Massachusetts e Nevada discutiam o consumo recreativo da maconha. 

João Macedo, participante do canal de basquete Camisa 23, concorda com a ideia de Phil Jackson e ainda enfatiza a riqueza cultural do esporte. “Eu gosto de dizer que o basquete vai além da quadra e da bola. O basquete envolve muita coisa, é música, é moda, os famosos sneakers. A maconha está dentro disso, faz parte dessa cultura. Quantos rappers e artistas não citam maconha e basquete? O Kevin Durant usa maconha antes de jogar basquete, e não só ele.”

Atualmente, Kevin Durant é o maior porta-voz da liberação do uso de maconha na NBA. O MVP (Most Valuable Player) de 2014 participou do programa My Guest Needs No Introduction, apresentado por David Letterman, e afirmou que estava sobre os efeitos da erva durante a entrevista. “É assim, marijuana é marijuana. Não faz mal a ninguém. Ela só vai ajudar, realçar e fazer coisas boas. Eu sinto que não deveria sequer ser base para tanta discussão. Para mim, a maconha limpa um pouco as distrações do cérebro. Acalma você. É como tomar uma taça de vinho ”. 

Kevin Durant com David Letterman no programa My Guest Needs No Introduction da Netflix

A decisão pela permissão da cannabis no antidoping é mais um passo na construção da NBA como uma instituição progressista. Em dezembro de 2014, estrelas do basquete como Lebron James, Kyrie Irving e Derrick Rose apareceram em aquecimentos de partidas vestindo camisas pretas com a frase “I can’t breathe”, que pode ser traduzida para “não consigo respirar”, como forma de protesto pelo estrangulamento de Eric Garner por um policial de Nova Iorque.

Outro caso notável ocorreu em 2015, quando Stephen Curry, Chris Paul e Carmelo Anthony participaram de um comercial dirigido por Spike Lee sobre a luta contra a cultura armamentista. A propaganda foi exibida no dia do Natal, uma das datas mais tradicionais da liga, em que, durante a temporada regular, são marcadas quatro partidas entre rivais. A permissão dessas manifestações mostram como a NBA já é flexível há algum tempo com o uso da marca como plataforma para pautas de ativismo social, embora nem sempre tenha sido o caso.

A visão do caráter progressista da NBA nasce do conservadorismo presente nas outras ligas americanas. O futebol americano, esporte mais popular do país, se sobressai como protetor de valores tradicionais do homem branco, embora mais de 50% dos atletas da NFL sejam negros. Historicamente, a segregação é fortemente presente na liga. Entre 1933 e 1946, os negros foram banidos da prática do esporte profissional e, após o fim da restrição, sofreram dificuldades para conseguir oportunidades para atuarem como quarterbacks, posição considerada como “mente pensante”.

Um episódio popular que reforça essa ideia ocorreu durante a temporada de 2016. O então quarterback do San Francisco 49ers, Colin Kaepernick, promoveu diferentes formas de protestos contra a violência racial nos EUA. Em alguns casos, Colin ajoelhava ou ficava sentado durante a execução do hino nacional, em outros, era visto usando meias com a representação de policiais como porcos. Na temporada seguinte, o jogador não conseguiu assinar um contrato com nenhum time da liga, ainda que tivesse totais condições de jogar. O jogador processou a NFL sob a acusação de terem impedido sua presença em qualquer organização de forma proposital, e alcançou um acordo confidencial com a liga em fevereiro de 2019. 7 anos depois, Kaepernick continua sem contrato e atua como ativista dos direitos humanos nos Estados Unidos. 

Meia do quarterback Collin Kaepernick

Em 2020, porém, a NFL não puniu os jogadores que se manifestaram durante a ascensão do movimento Black Lives Matter após a morte de George Floyd. Roger Goodell, comissário da NFL, publicou um vídeo nas redes sociais em que condena o racismo e admite o erro em não ouvir os protestos de jogadores que se ajoelharam no hino nacional americano antes das partidas.

O estudante e fã da NBA, Rodrigo Correa, avaliou a diferença das atitudes da NFL e da NBA, as duas maiores ligas dos Estados Unidos. “Diferente da NFL, que é muito conservadora nos seus costumes, a NBA tenta nos últimos anos liberar certas coisas. É um progressismo que caminha junto com esse com esse mundo atual. No início da do século tivemos aquelas polêmicas com o Allen Iverson, mas desde que o Adam Silver entrou no lugar do David Stern, a NBA abraçou uma ala mais progressista”.

Allen Iverson é considerado um dos grandes disruptores da NBA. O jogador promoveu a cultura negra na liga e pavimentou o caminho para as gerações seguintes de jogadores. Em 2005, o comissário David Stern promoveu um código de vestimenta para os atletas, banindo itens como jóias, bonés e correntes, que eram muito utilizados na cultura hip-hop dos anos 2000, exibidos constantemente por Iverson.

A partir de 2014, com a entrada de Adam Silver na vaga de comissário, os jogadores passam a ter maior liberdade no debate e divulgação de suas causas. Em 2020, a frase “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”)  foi escrita nas quadras do Complexo ESPN Wide World of Sports, no Walt Disney World Resort, em Orlando, local que foi palco dos jogos da NBA durante a pandemia de Covid-19.  Tais atitudes reforçam a ideia de que a nova direção tende a se alinhar ao pensamentos dos atletas, principalmente aos atletas negros, visto que a liga é, historicamente, construída por eles.

Jogadores da NBA ajoelhando durante o hino nacional / Foto: Ashley Landis

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