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JORNALISMO EM SÃO GONÇALO AINDA ENFRENTA DESAFIOS NA COBERTURA DE SEGURANÇA PÚBLICA

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Igreja Matriz, no Centro, é um dos principais símbolos de São Gonçalo (Foto: Prefeitura de São Gonçalo)

São Gonçalo é considerada uma das cidades mais violentas do estado do Rio, segundo dados da plataforma Fogo Cruzado. Em 2021, apenas no mês de setembro, a cidade registrou um total de 51 pessoas baleadas. Destas, 21 morreram. Nesse sentido, a segurança pública constitui-se como principal assunto de veículos da imprensa local. Apesar disso, essa cobertura ainda possui limitações e vários desafios a serem superados.

Nossa reportagem buscou verificar como a editoria de segurança pública é abordada no principal meio de comunicação jornalístico da cidade, o jornal “O São Gonçalo”. Destaque-se este veículo, dentre outros, por ser reconhecido amplamente pela população, diferenciando-se de mídias locais que abordam a segurança pública, mas que não são conduzidas por profissionais de jornalismo e, portanto, sem compromisso com uma conduta ética. 

Na pesquisa, analisamos todas as matérias sobre a cidade de São Gonçalo publicadas no jornal durante o período do dia 2 de maio até 9 de maio do ano de 2022. Ao todo, foram noticiadas 50 reportagens, sendo destas, 26 (52%) relacionadas à segurança pública e 20 (40%) classificadas como “geral”, destacando os mais variados assuntos. Apenas 3 (6%) foram incluídas no grupo de “cultura” e uma (2%) em “serviços”.

Para analisar como as 26 reportagens de segurança pública foram apresentadas aos leitores nesse período, construímos um método de perguntas utilizado como critérios: 

  • O veículo apresenta os nomes dos suspeitos?
  • O veículo apresenta incorretamente os suspeitos como “culpados” ou “acusados”?
  • A fonte predominante da reportagem é a polícia?
  • O veículo ouviu mais de uma fonte?
  • Há títulos ou trechos apelativos ou exagerados?

Pôde-se constatar que das 26 matérias, 24 (96%) tinham como fonte predominante da informação a Polícia Militar ou a Polícia Civil. As exceções são reportagens que falam sobre um homem desaparecido, no qual a fonte predominante é a família, e sobre o quadro de saúde de um caminhoneiro baleado em uma comunidade de São Gonçalo. Isso porque, nesse caso, a fonte principal é a unidade de saúde no qual a vítima estava internada.

Verificamos também que em 23 reportagens (92%), o veículo ouviu apenas uma fonte. Nas reportagens que ouviram mais de uma fonte, os mais buscados eram familiares de vítimas e outros órgãos públicos. Portanto, na maioria das matérias, a polícia era a única fonte, conduzindo toda a reportagem para o seu viés. 

No que diz respeito à apresentação dos nomes dos suspeitos de forma indevida, há uma queda nos números, embora ainda seja algo presente. Constatou-se que em quatro destas reportagens (16%), os suspeitos foram apresentados incorretamente como “culpados” ou “acusados”. Quando não há a apresentação de denúncia por parte da Justiça, não há acusação criminal. Portanto, até que se prove o contrário, presos em ações policiais sem mandado de prisão devem ser considerados “suspeitos” pela legislação brasileira.

Outro recorte analisado foi em relação ao uso do exagero ou apelo nas reportagens, o chamado “sensacionalismo”. Apenas duas notícias (8%) utilizaram esse estilo no momento de interpretar os fatos. As exceções tratam de uma reportagem que apresenta o apelido pejorativo do acusado, vulgo “Gordo Sujo”, e o caso de um homem que foi morto a facadas, cujo título destaca que a motivação foi devido ao envolvimento dele em um “triângulo amoroso”. 

Por fim, verificamos também que nenhuma reportagem publicada no período analisado apresentou o nome dos suspeitos. De acordo com a lei 13.869/2021, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, a prática de “constranger o preso ou o detento” e exibir seu corpo “à curiosidade pública” prevê pena de detenção de um a quatro anos, além de multa à autoridade policial.

As conclusões que podem ser obtidas, portanto, é que a cobertura local de segurança pública ainda é profundamente ligada ao factual e o processo de apuração passa, sobretudo, pela fonte oficial, que é predominantemente a Polícia Militar ou a Polícia Civil. Por conta disso, são poucas as reportagens do principal veículo local de São Gonçalo que abordam, de forma crítica, investigativa e analítica os problemas de segurança pública da cidade, limitando-se à mera comunicação dos fatos.  

“A VIOLÊNCIA É UMA QUESTÃO PERMANENTE NA CIDADE”

“O jornalismo policial sempre foi nosso foco porque São Gonçalo é uma das maiores metrópoles do Brasil, uma cidade com mais de um milhão de habitantes, que tem na violência uma questão que é quase permanente”, afirma o chefe de reportagem do Jornal O São Gonçalo, Sérgio Soares. Ele tem 58 anos, sendo 14 deles dedicados ao trabalho n’O São Gonçalo. Formado em jornalismo desde 1990, também teve passagem pelos diários O Fluminense, O Dia e Jornal do Brasil. 

“Além dos crimes de motivação econômica, homicídios e questões de família, ainda existem outros fatores em São Gonçalo, como a colocação de barricadas, que atraem a atenção da audiência para a pauta de segurança. Temos uma gama de situações que despertam o interesse e isso tem sido permanente ao longo dos anos. Daí o fato de o jornal sempre se debruçar sobre a violência local, porque essa cobertura que fazemos já nos tornou uma referência não só para atrair os leitores, mas também como fonte de denúncias para a população”, afirma Sérgio.

Sérgio Soares atua no jornal O São Gonçalo há 14 anos (Foto: Reproduçãpo/Internet)

Na opinião do jornalista, a cobertura policial feita pelos veículos de imprensa no geral também é uma forma de pressionar o poder público por mudanças. 

“Nesse processo de tentar acompanhar essas questões, a imprensa também ajuda na cobrança às autoridades. Nós sabemos que existe um grande interesse da população por melhorias. Por isso, o jornalismo policial está em constante evidência. O nosso grande desafio é sempre tentar acompanhar os assuntos que sejam de maior interesse da sociedade e azeitar ou ajeitar isso para a nossa cultura”, aponta.

Sérgio também disse que ter a polícia como uma das fontes centrais é fundamental para garantir “mais qualidade” no relato dos fatos.

“A maioria dos fatos se dá em função de crimes que envolvem os órgãos oficiais, que, neste caso, são as policiais Militar e Civil. A relação com os órgãos policiais é muito estratégica e fundamental para produzir a informação de acordo com o fato ocorrido. Hoje em dia é preciso adotar muitos cuidados ao produzir jornalismo policial, porque precisamos ter uma espécie de parcerias constantes com as fontes para sempre divulgar os fatos que sejam o mais próximo da realidade, para que não tenha informações distorcidas e para que também possamos blindar o nosso conteúdo para não sofrer ações na Justiça. Assim, conseguimos atingir o nosso público com conteúdo de qualidade. Com isso, é possível evitar efeitos colaterais e o sensacionalismo”, conta.

A CRÍTICA AO O SÃO GONÇALO E À COBERTURA LOCAL DA IMPRENSA

Para Mário Lima Junior, escritor e morador de São Gonçalo, o principal jornal da cidade vive atualmente uma “pobreza jornalística” que desvirtuou o objetivo para o qual o veículo foi criado, em 1931. Na sua visão, o tema gera engajamento para o jornal e, por isso, é fortemente explorado. 

“São Gonçalo, infelizmente, é uma cidade violenta. A população da cidade se interessa pelo tema porque sofre bastante com ele. Como explora anúncios insistentes no seu site e depende de visitas, o Jornal O São Gonçalo foca em um problema real e em uma pauta tradicionalmente atraente. A análise reflete principalmente a pobreza jornalística de O São Gonçalo, criado em 1931 por Belarmino de Mattos para ser uma ‘árvore da inteligência, da vontade popular e das aspirações públicas’. A população também se interessa pelo que acontece na Câmara Municipal e na Prefeitura, por exemplo, mas o jornal não conta com matérias de qualidade para o debate político”, afirma.

Mário Lima Jr. escreve artigos sobre São Gonçalo (Foto: Reprodução/Internet)

Em suas redes sociais, Mário escreve artigos semanais contra a pobreza e a violência no Brasil, além de ser uma das principais vozes locais sobre o cotidiano político e social de São Gonçalo. O escritor enxerga como “deficiência” a falta de reportagens que tratam sobre os temas de cultura, política e sociedade em São Gonçalo.

“Desconhecendo São Gonçalo, eles se tornam mais incapazes de cumprir o compromisso de cada um com o Jornalismo. É uma deficiência nociva porque a opinião de muitos gonçalenses de classe média é formada pelo consumo de notícias dos jornais mais populares, inclusive jornais de fora da cidade”, pontua.

Mário afirma que os jornais são os principais perdedores com a limitação da cobertura sobre a cidade. “Vejo um desperdício de gente, de recursos e de tempo. Conhecem muito bem São Gonçalo as pessoas que circulam nos centros comerciais dos bairros, caminham pela cidade e se divertem no futebol e nas festas entre amigos”, afirma o escritor.

COBERTURA DE SEGURANÇA: O QUE DIZEM OS JORNALISTAS?

Uma das práticas implícitas ao trabalho jornalístico, que também é explicitada pela categoria, é a busca por fontes confiáveis e que validem as informações que serão apresentadas aos leitores. Esse, na verdade, é um dos principais instrumentos que garante a credibilidade jornalística e a confiança dos consumidores da informação. De preferência, o jornalista deve sempre buscar ouvir mais de uma fonte, contrastar opiniões e tudo que é apresentado, para, ao fim, levar ao leitor a informação mais apurada e próxima daquilo que é a realidade. 

No entanto, pelos dados analisados, é possível verificar que nem sempre isso acontece na pauta de segurança pública. Na grande maioria dos casos, a polícia é a única fonte da informação, o que acaba conduzindo a reportagem à sua visão do fato. 

“Apesar de trabalhar com isso, eu sou um cara muito crítico à cobertura de segurança pública. Atualmente, principalmente no Rio de Janeiro, eu acredito que a cobertura de segurança é muito pautada pelo hard news e pela agenda. E isso acaba refletindo muito a agenda da polícia. O que a gente publica muito são operações policiais e a polícia acaba pautando muito o noticiário. Eu acho que você tem poucas reportagens mais produzidas, poucas investigações mais aprofundadas e poucas matérias analíticas feitas com com cuidado e com o tempo”, afirmou Rafael Soares, repórter do jornal O Globo e com passagem pelo Extra. Hoje, com a ascensão da carreira, Rafael não trabalha mais com “hard news” e seu foco é em reportagens especiais, que demandam mais tempo de apuração.

Rafael Soares, repórter especial de O Globo (Foto: Reprodução/internet)

Ao questionarmos repórteres de diferentes veículos sobre as dificuldades de encontrar uma fonte secundária para as reportagens, as respostas divergem. 

“Isso é natural. Eu vou dar um exemplo. Houve recentemente um caso de interrupção de circulação de ônibus no bairro Jardim Catarina, em São Gonçalo. Encontrar um morador que topa falar com você sobre essa temática é praticamente impossível, por conta da opressão do crime organizado. As pessoas ficam com medo. Em casos desse tipo, há sim uma dificuldade em encontrar uma segunda fonte”, afirma Vitor d’Ávila, que atuou como repórter nos jornais O São Gonçalo e A Tribuna. Atualmente, Vitor é assessor de comunicação na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). 

“Às vezes, as pessoas envolvidas, sejam elas familiares de vítimas de criminosos, ou moradores de comunidades, têm muito medo de falar. Elas se sentem ameaçadas pelo tráfico e tem medo até de falar com a gente, porque de alguma forma se envolver na situação pode acabar gerando problemas elas”, conta Ana Carolina Moraes, repórter que atuou no jornal O São Gonçalo e, atualmente, trabalha no Enfoco. 

“Acredito que na maior parte das reportagens que eu faço sobre crimes envolvendo policiais, a fonte primária de informação não é a polícia, e sim pais vítimas e testemunhas. Eu até entendo que quem cobre segurança pública no início da carreira tem até alguma dificuldade para encontrar fonte porque precisa conseguir informação, mas hoje, por exemplo, tenho várias fontes que são moradores de favela do Rio que me contam coisas sobre operações policiais e assim as melhores matérias que eu já fiz não partiram da polícia. Muito pelo contrário”, conta Rafael Soares, de O Globo.

Ana Carolina Moraes, repórter do Enfoco (Foto: Reprodução/internet)

Os jornalistas também reconheceram a polícia como um elemento importante para a apuração das reportagens, mas destacaram diferenças quanto ao processo de apuração das pautas. 

“A gente tem que ouvir a Polícia Militar para entender qual ação está sendo feita para reprimir determinado tipo de crime ou ouvir a própria Civil para entender qual é a investigação e o que que está sendo apurado, qual origem, a causa de um crime do tipo. Na editoria de polícia e segurança pública, tudo acaba desaguando realmente para polícia. Acaba sendo um caminho até natural, de certa forma, embora a gente não deva se embasar unicamente pela polícia. Ouvir o máximo de fonte possíveis porque a polícia também erra. A polícia também tem seus interesses. Então é preciso ficar muito atento”, conta Vitor d’Ávila

“Sempre escuto e eles também sempre se manifestam, é muito difícil não se manifestarem. Mesmo quando eles não estão envolvidos, respondem que ‘a Polícia Militar não foi acionada para essa ocorrência’. Esse “não” também é importante para a nossa apuração na nossa matéria. Mas, para além disso, é preciso ouvir todos os lados. É primordial, para mim, ter os dois lados e saber tudo que aconteceu para poder passar informação da forma mais correta possível”, diz Ana Carolina Moraes.

“Para mim, a parte de ouvir a polícia é o ‘outro lado’. Como em qualquer reportagem que eu publico, preciso ouvir o outro lado. Mas o processo de apuração mesmo começa muitas vezes fora da polícia, ouvindo vítimas, testemunhas e, às vezes, até integrantes da corporação, que eu acho fundamental os repórteres terem fontes dentro das corporações para conseguirem entendê-las melhor. O que eu acho que não pode acontecer é a polícia pautar a cobertura de segurança pública”, afirma Rafael Soares.

Vitor d’Ávila, ex-repórter de O São Gonçalo e A Tribuna (Foto: Reprodução/internet)

Ao falar sobre a repercussão dos casos, todos os jornalistas pontuaram que é essencial o acompanhamento das notícias, bem com seus impactos na sociedade. 

“Não só costumo como considero isso uma parte fundamental do trabalho. Porque a notícia tem seus desdobramentos, tem suas repercussões, tem parte judicial, muitas delas viram processos que vão podem ser levados a júri popular A notícia não pode parar só no fato, senão você perde toda a razão de ser. Você precisa acompanhar até o final porque a notícia começa no fato e termina lá na frente o último desdobramento”, afirma Vitor.

“Geralmente sim, a gente tem até orientação pra isso mesmo. Tem casos de pessoas que morrem em acidentes, por exemplo, que a gente tenta entender como era a vida daquela pessoa, verificar se era um pai ou mãe de família, se ajudava na renda da casa, essas coisas. Essas histórias mudam a vida dos envolvidos”, conta Ana Carolina.

“Já trabalhei em jornais que estimulavam que os repórteres esgotassem a cobertura sobre um caso até que ele fosse resolvido. Por exemplo, fiz algumas reportagens sobre o caso de um garoto, que era inocente, e por conta dessa apuração e acompanhamento, ele acabou solto. Ele tinha sido preso por engano. Eu acho que é importante os casos serem cobertos do início ao fim, porque existem muitos impactos de uma reportagem. Eu acho que a cobrança sistemática também é eficaz para resolução dos casos”, diz Rafael.

Reportagem: Claudionei Abreu, Lucas Luciano, João Scistowicz e Guilherme Sznajder

Supervisão: Lorenna Medeiros

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