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A inconsciência ainda tem poder

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  • Reportagem: Dandara Franco

 

Após 130 anos da abolição, a presença de frases racistas provam o quanto o uso das palavras tem poder

Em 1530, mais de 2 milhões de homens e mulheres foram trazidos para as terras tupiniquins na condição de escravos e, todos tinham alguns pontos em comum: o medo e angústia de terem sido arrancados de suas famílias, o desespero das viagens marítimas em condições desumanas e, claro, a cor da pele que ressaltava com os óleos que eram esfregados em seus corpos ao desembarcarem, para tornar o “produto” mais atrativo, além da avaliação das gengivas e da largura dos ombros. Afinal, a carne mais barata do mercado tinha tonalidades.

Emanuele Rocha, vestibulanda e ativista do movimento negro. /Arquivo pessoal

Entre 1530 e 1856, os negros escravizados foram tratados como mercadoria pela sociedade e, principalmente, pelos seus senhores. Mas, isso nunca impediu que revoltas e motins acontecessem através da organização dos próprios escravos, que, desde o início, transformaram o significado de ubuntu em realidade, “sou o que sou pelo o que nós somos”. Tanto eles, quanto os seus senhores, sabiam que a união entre os seus era o que poderia manter a sanidade em meio de tantas lágrimas, chibatadas e punições.

O embate direto fez com que, no cenário atual, tenhamos no código penal leis que consideram crime qualquer ação de racismo ou injúria racial, seja através de gestos, e agressões físicas, ou verbais. Hoje, é possível dizer que há debates sobre racismo na sociedade e que há a construção de um diálogo coerente que é capaz de informar cada indivíduo sobre si mesmo, fazendo com que ele entre em contato com a sua história. O professor e advogado, Lucivaldo Dias, enfatiza que “a  lei vem para proteger a quem está sofrendo, por isso a necessidade delas: para proteger os descendentes daqueles que sofreram 300 anos de escravidão no último país a aderir a abolição, e que ainda colhe as consequências disso”.

A professora e doutoranda em humanidades, cultura e arte pela unigranrio, co-autora do livro “Do batuque do samba ao batuque do funk: culturas negras, suburbanas, cariocas” e pesquisadora de análise do discurso, Patrícia Luísa Rangel, diz que houve uma estratégia de sobrevivência desde o momento em que os negros foram capturados e escravizados e, que essa atitude os fortaleceu como grupo: a perseverança em sua cultura e linguagem.

Iuri Moraes, estudante e ativista./Arquivo Pessoal

A  inserção da cultura africana através da reprodução da fala foi quase uma negociação simbólica, através de um sincretismo, já que “a nossa linguagem popular é puramente africana, uma vez que eram os africanos que cuidavam de tudo, que contavam as histórias para as crianças, adicionando palavras da sua língua nativa, e se relacionavam com as donas da casa, então todo mundo aprendeu com aquele jeito deles de falarem.”

Os grandes fazendeiros estabeleciam métodos para desestruturar essa conexão entre os escravos, além de qualquer relação afetiva com quem vivia na casa – e isso incluía as “tias” e as amas de leite que tomavam conta de cada criança. Era extremamente comum um escravo receber apenas meia tigela de comida, como forma de castigo após não realizar alguma ordem, assim como também era comum ter aqueles, e principalmente àquelas, que tinham a permissão – e não o direito – de colocar o pé na cozinha, ou seja, eram confiáveis para conviverem dentro da casa, por terem um ou dois tons mais claros que os outros companheiros de pele retinta – que é o tom de pele negra mais escuro.

Apesar dos desentendimentos, a união pelo coletivo se manteve e perpetua para as novas gerações. Desde as antigas comunidades no Orkut, até os grupos de Whatsapp, grupos de pessoas negras se encontram e dialogam sobre o seu papel na sociedade contemporânea, além de ser um local de refúgio em meio ao caos racista que ainda se instaura nos principais meios profissionais e estudantis. Nesses grupos, virtuais e presenciais, o foco sempre é o diálogo, para que um possa aprender com o outro, na tentativa de desconstruir amarras sociais que sempre foram impostas de formas negativas.

A estudante de Licenciatura em educação do campo, UFRRJ, e ativista do movimento negro, Nathalia Dias começou a perceber a problemática da tão popular frase “cabelo duro” que o lápis de cor “cor de pele” ia muito além do rosa quando entrou em contato com o seu passado através de coletivos. Neles, a estudante descobriu o significado de algumas expressões como “denegrir” (forma pejorativa de dizer que está se manchando, tornando-se negro), e, hoje, acredita que essas frases, mesmo que ressignificadas, ainda tenham conteúdo racistas que só são utilizadas cotidianamente porque não há o conhecimento geral sobre o fundamento de cada expressão.

Nathália Dias /Foto: Dandara Franco

Para Nathalia, é necessário que haja debates e discussões para que seja apresentado a versão histórica que conte o motivo dessas expressões. “É importante sempre refletir sobre as coisas que reproduzimos, para não continuar perpetuando o preconceito. Se há pessoas que se sentem ofendidas com essas frases é porque aquilo atinge de forma negativa um determinado grupo.”

Já para a professora e doutoranda, Patrícia Luísa Rangel, o emprego das palavras durante a escravidão foi usado para um determinado fim, mas, atualmente, não teria tanta carga negativa ao analisar o contexto. “Desde que não seja num conceito de preconceito ou racismo, não podemos pegar uma palavra isolada e empregar de qualquer sentido porque a palavra só terá esse peso se a construção linguística exigir a mesma. Teoricamente, na língua portuguesa a palavra sozinha, sem alguma entonação ou construção, não tem efeito”

Nas senzalas, os focos de rebeliões continuavam de forma intensa, tanto com os escravos fugitivos, que se abrigavam nos quilombos, quanto com os que ainda estavam nas fazendas, mas já imploravam por uma nova perspectiva de vida. Zumbi e Dandara dos Palmares foram alguns dos principais líderes na luta pela resistência contra a escravidão. Dandara lutava principalmente pela segurança das mulheres negras, que eram constantemente assediadas pelos seus senhores e os capitães do mato – um dos processos que tornou o Brasil o país da miscigenação, mesmo que tenha sido de maneira forçada.

Foto: Dandara Franco

No dia 20 de Novembro de 1695, Zumbi foi capturado e assassinado para que pudessem expor a sua cabeça em praça pública, para que tivessem provas reais da sua morte, já que não seria a primeira tentativa de extermínio do líder a favor da liberdade, mas seria primeira vez que Zumbi não conseguiria retornar dos mortos.

Zumbi pode não ter voltado, mas estruturou um círculo de confiança e esperança para cada negro escravizado e seus descendentes e, junto à Dandara, virou símbolo de heroísmo e resistência para cada geração – fazendo com que a história revivesse eternamente.

Descender de luta e resistência também traz alguns fardos, considerando as consequências que toda essa trajetória ocasionou, como a desigualdade social presente hoje em dia ou o fato de que conseguimos ser um país extremamente racista que não consegue nem assumir que o racismo existe. As frases “meia tigela’’ e “pé na cozinha”, apresentadas anteriormente, são frases que, mesmo que tendo uma ressignificação, possuem fundamentos escravocratas. O “pé na cozinha” é uma forma de falar que, por mais clara que a pessoa seja, em tempos de escravidão, ela não seria livre.

A fala é um dos principais mecanismos para convivência humana, através dela pode-se iniciar novos relacionamentos, conhecer pessoas e trocar experiências. Mas, através dela, também pode-se começar a propagação de ódio e a fusão do racismo velado que está cada vez mais escancarando as suas raízes.

Para Ulisses Mauro Lima, professor de história há 38 anos, as formações discursivas descrevem a relação do branco como dominante e negro como dominado que foi desenvolvido historicamente a partir do domínio de diferentes viés da sociedade, tanto de forma institucional, quanto pelo código civil que, “ao longo da história criminalizou as crenças de matriz africanas e a dança pelo autoritarismo e pelo paternalismo assistencialista.”

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