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“Parece que querem fingir que você não existe, pois assim não tem que se preocupar”

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Parado sempre ao lado de sua mesa, em pé, falando em tom calmo, Josemar de Araújo disserta sobre os Direitos Humanos. A criação da ONU, a Segunda Guerra Mundial, a Comissão Interamericana de Direitos humanos e marcos históricos balizam sua aula que, em folhas dadas ao início do período, transmitem todo o conteúdo necessário.

Foto:Arquivo pessoal.

Ao perceber que o professor é deficiente visual, o impacto inicial é visível aos alunos, e questões como a facilidade em colar nas provas de um professor cego vem logo ao imaginário das turmas de terceiro período do curso de direito. O fato de ser deficiente não tira o carisma do professor, que prende os alunos com sua retórica, histórias e piadas sobre sua condição, além de acalmar os ânimos dizendo que em semanas de provas, sua assistente o acompanha para evitar as tentativas dos menos estudiosos.  

Josemar, de 39 anos, é professor e advogado, além de ter mestrado e doutorado na Universidade Federal Fluminense, e nasceu com alguma visão até perde-la de forma gradativa aos 9 anos. Chamando atenção por seu bom humor, é natural vê-lo fazendo piadas sobre seu cotidiano e a forma com que as pessoas tratam sua doença. “É engraçado quando as pessoas veem que falaram algum tipo de besteira, como me perguntar se vi o que o Bolsonaro falou, respondo que não tenho visto muitas coisas ultimamente”. 

Os alunos têm diversas opiniões e sentimentos pelo professor, considerado muito exigente na universidade. Rafael Morais, 23 anos, aluno do terceiro período no curso de Direito comentou, “Para mim não teve diferença nenhuma, só o impacto inicial mesmo. Você não sabe muito bem como lidar, mas depois fluiu tudo naturalmente. A forma como ele trata a própria deficiência deixa todo mundo mais à vontade, faz você repensar sobre as dificuldades que acha que passa na sua vida”. Josemar tem carinho pelos alunos e pelas pluralidades de perfis em sala de aula. “Tem de tudo, tem os alunos mais revoltados, os mais simpáticos, mas em geral a relação é sempre muito próxima e saudável. “

Josemar tinha tudo para não conseguir. Migrante do estado de Rondônia, deficiente visual, negro e pobre, passou a maior parte de sua adolescência num internato para deficientes visuais. Chegava em fevereiro, e só voltava para casa em novembro, pois o Rio de Janeiro era o lugar mais próximo onde uma pessoa com suas dificuldades conseguiria estudar e se formar numa escola totalmente adaptada. Formado em Direito e Ciências Sociais na UFF, fez ambas as faculdades simultaneamente e trabalhava na madrugada como atendente de telemarketing para conseguir se manter e pagar suas contas.

“Não se preocupe em aprender, no fim do ano você será aprovado”, foi o que disse o professor do ensino médio que fingia que Josemar não existia, quando ele foi lhe perguntar como faria as provas. Mas como acomodar-se nunca foi uma opção, o garoto não se conformou, queria mais. “Como eu queria prestar vestibular, me vi obrigado a aprender tudo fora da escola, só ia para as aulas pela presença e o diploma. ”

Outro momento em que percebeu que não o viam como uma pessoa e sim como deficiente, o cego, foi quando uma empresa o contratou e, no primeiro dia, o mandou de volta para casa. “Não se preocupe, pode voltar para casa que todo o dia 5 o seu salário estará na sua conta. Estamos apenas dando uma satisfação para o Ministério do Trabalho”, ouviu. Ali percebeu que a instituição não procurava uma pessoa, e sim uma deficiência, para cumprir a lei 8213/91 que prevê a contratação de 2% a 5% de deficientes físicos, de acordo com o número de funcionários. “Foi um momento em que eu percebi que existia enquanto número, e não como um profissional qualificado e preparado para aquela vaga”, diz.

Coordenador do curso de Direito da faculdade carioca, Universidade Veiga de Almeida, Leonardo Rabelo considera Josemar um amigo. Presente no processo seletivo do professor, participou da aula teste e se impressionou com o professor. “A única pergunta que fiz foi como ele daria as provas sem enxergar. Ele disse que a secretária o acompanharia somente nesse dia. Me convenceu. ”

Josemar é casado com Aline, e a conheceu no curso de Direito da extinta Faculdade da Cidade. Ela lia para ele na biblioteca da faculdade, e começaram o relacionamento em janeiro de 2001, casando em janeiro de 2002. “É plenamente possível uma pessoa trabalhar, estudar, desenvolver para o seu próprio país, uma vez que haja uma adequação para a sua deficiência. ” Avaliou Aline.

Calçadas com obstáculos, chão irregular, descaso do governo. Para um deficiente visual é comum se sentir literalmente no escuro. “São espaços de uma incerteza muito grande. O Rio de Janeiro é uma cidade onde se escutam tiros a toda hora e você não sabe de onde estão vindo. Temos uma cidade tomada por artefatos estranhos na calçada, muitas barracas de ambulantes, e pessoas vendendo coisas no chão, muitas obras incompletas, buracos e tapumes. Parece que querem fingir que você não existe, pois assim não tem que se preocupar. ”, diz Josemar, comparando os obstáculos que passa na rua, com os da vida.